Fugas - Vinhos

Nelson Garrido

A grande festa de Champanhe

Por Pedro Garcias

Reims, Épernay, Dizy, Ambonnay. Le Mesnil-Sur-Oger… Três dias frenéticos e memoráveis pelo universo efervescente e glamoroso de Champanhe, guiados por um russo que se apaixonou por Portugal e com um jantar de leitão à Bairrada pelo meio.

Todos os anos, pela Primavera e durante uma semana, a região de Champanhe dá-se a conhecer, através de provas mais ou menos exclusivas em palácios, hotéis, restaurantes estrelados, caves e adegas. É um dos mais extraordinários eventos do mundo do vinho, aberto apenas a jornalistas, profissionais do sector e convidados. Para os amantes da bebida, é o céu na terra, uma rara oportunidade de conhecer e beber grandes champanhes sem desembolsar fortunas

As casas de renome não poupam a gastos para receber os seus clientes num ambiente de luxo e sofisticação. Um simples passeio pela imponente Avenida de Champanhe, em Épernay, com o seu escol de marcas famosas, chega para perceber a sumptuosidade que paira sobre o mundo exclusivo das “big company” e que por esses dias atinge uma dimensão quase onírica.  Só uns eleitos, gente com muito dinheiro, consegue entrar nas apresentações do grupo Louis Vuitton-Moët Hennessy e ter a felicidade de experimentar colheitas históricas de Krug, Dom Perignon e Ruinart; ou da casa Drappier, para provar os seus caríssimos e exclusivos Boërl & Kroff; ou da Salon, para conhecer alguns dos melhores champanhes de Chardonnay da icónica zona do Le Mesnil, na chamada Côte des Blancs.

Mas há muito mais champanhe para além destas casas sonantes. Algumas das melhores vinhas da região estão, de resto, na posse de pequenas empresas familiares que não as vendem por dinheiro nenhum. E um hectare nos melhores sítios chega a custar três milhões de euros, dinheiro mais do que suficiente para comprar uma grande quinta no Douro, por exemplo.

Muitos destes produtores, alguns de culto, como Jacques Selosse, reúnem-se em grupos mais ou menos formais de promoção comum e mostram-se em conjunto nestes dias de degustação primaveril. Nestes eventos, provam-se champanhes já fora do mercado, antecipam-se lançamentos previstos apenas para daqui a cinco ou seis anos, testam-se os vinhos base (os chamados vins clairs), descobrem-se produtores desconhecidos que fazem vinhos de ir às lágrimas, discutem-se os detalhes minerais que separam um bom champanhe de um champanhe antológico e entra-se na chamada degustação geo-sensorial, uma nova forma de provar o vinho. Em contraponto com a ideia de decifrar um vinho a partir do seu aroma e do seu gosto, a noção de degustação geo-sensorial privilegia o gosto em conjugação com o conhecimento do terroir. Em vez de descritores como frutado, floral ou especiado, que reflectem a dimensão orgânica do vinho, a prova geo-sensorial coloca o foco na dimensão mineral do vinho, utilizando descritores como sapidez, salinidade, vivacidade, frescura e digestibilidade.

 

A revelação Agrapart

Em Champanhe, a bandeira da mineralidade nos vinhos é erguida, sobretudo, por Jacques Selosse e Pascal Agrapart, dois biodinâmicos que fazem vinhos monumentais e distintos. Encontrámos Agrapart logo na primeira prova, do grupo Terre&Vins de Champanhe, realizada no Palais du Tau, junto à esplendorosa catedral de Reims, um dos poucos edifícios históricos da capital de Champanhe que sobreviveram aos bombardeamentos na Segunda Guerra Mundial. Slava Ysmailov, um russo nascido na Estónia que trabalha a partir de Portugal, onde vive desde alguns anos, para uma importadora da Rússia, é o mestre de cerimónias e a lebre de cada degustação. Profundo conhecedor de Champanhe e dos seus diferentes terroirs, é ele que abre todas as portas e que sugere o que vale a pena ser provado. Mário Sérgio, da Quinta das Bágeiras e um dos que, “se pudesse, bebia champanhe todos os dias”, é o companheiro de prova. “Têm que provar Agrapart, Emmanuel Brochet, Olivier Oriot, David Léclapart..”, vai enumerando Slava, estendendo a lista a mais uns quantos de um grupo de 23 produtores, todos praticantes de viticultura orgânica ou similar.

Agrapart (Avize, Côte des Blancs) é mesmo uma revelação. Os seus Minéral, Avizoise e Vénus são vinhos monumentais, muito ricos, finos e vivos, provocando uma explosão de frescura mineral na boca, expressando bem cada um deles a natureza do solo de onde vêm as uvas (as colheitas mais recentes custam entre 50 e 110 euros).

Emmanuel Brochet (Villers-Aux-Noeuds) e David Léclapart (Trépail) mantiveram-nos nas nuvens. O primeiro com o Haut Chardonnay 2007, um champanhe fantástico, cheio de tensão, seco, salino e fresquíssimo (80 euros); e Léclapart com o Apôtre 2010, um glorioso Pinot Noir 100% estagiado em barrica (85 euros). Olivier Oriot (Les Riceys) provou-nos o que já sabíamos: que muitos dos champanhes que bebemos em Portugal são demasiado caros para a qualidade que têm. O seu Sève Blanc de Noirs 2010, de Pinot Noir, com o toque típico a queijo Camembert dos Pinot Noirs, é um champanhe magnífico e custa apenas 23 euros.

Nova degustação. O roteiro de Slava Ysmailov é um verdadeiro contra-relógio, sem pausa para almoço. Champanhe e mais champanhe e um pouco de queijo para enganar o estômago. O programa do primeiro dia ainda há-de incluir desgustações dos grupo Des Pieds e des Vins (onde descobrimos Aurélien Lurquin, um jovem freak e biodinâmico da aldeia de Romery, produtor de garagem que mostrou dois champanhes belíssimos, um Chardonnay e um Pinot Meunier de 2013, ambos zero dosage e com um pvp inferior a 50 euros), Genération Champagne e Passion Chardonnay (um colosso o Blanc des Blancs Extra-Brut Premier Cru 1996, da casa Henriet-Bazin), uma prova de vins clairs em Verzenay, uma visita a Benoît Margret (um biodinâmico de Ambonnay, aldeia de onde saem alguns dos melhores vinhos de Pinot Noir de Champanhe), e, pelo meio, uma prova-teste memorável em Dizy, numa das caves da Jacquesson, com o grupo Trait-D-Union.  Um programa que nos levou a viajar pelas inúmeras aldeias e vilas de Champanhe, rodeadas de vinhas que se estendem encosta a cima até quase ao topo da omnipresente e verdejante montanha de Reims. Aparentemente muito homogénea, é uma paisagem graciosa que esconde nos vários tipos de solo e exposições um mundo de diferenças, bem patentes nos seis “domaines” do Trait-D-Union: Jacquesson, Egly-Oriet, Closerie, Larmendier-Bernier, Roger Coulon e Jacques Selosse.

A prova nestes seis produtores de culto começou com um desafio: uma prova às cegas de seis vins clairs de 2015, um de cada produtor, antes da degustação geral, com a chave a ser revelada apenas no final. A ideia era testar a identidade dos seis produtores, exercício mais ou menos fácil no caso de Jacques Selosse (Avize), que criou uma imagem de marca com os seus admiráveis champanhes algo oxidados mas muito complexos e minerais, cheios de notas de pólvora, grande acidez e salinidade. Os vinhos de Selosse podem não ser consensuais, mas são distintos e únicos. Grandiosos são também os Blanc de Noirs Vieilles Vignes de Egliet-Ouriet, os Jacquesson Ay Vauzelle Terme, de 2002, 2004 e 2009, e o exepcional Larmendier-Bernier Millésime 1989, um vinho de família que não está no mercado. 

Leitão da Bairrada e Quinta das Bágeiras em Épernay

A viagem a Champanhe poderia terminar nas caves da Jacquesson, que já seria uma bênção, mas ainda haveria nova maratona no dia seguinte, com três pontos altos: uma prova-atelier de grandes colheitas de Pierre Gimonet & Fils, Charles Heidsieck e Mailly (magníficos o Pierre Gimonet Cuvée Millésime de Collection 1996 e o Charles Heidsieck Cuvée Millésime 1989, em garrafa de cinco litros); uma visita a Robert Moncuit, um produtor de grandes champanhes e brancos tranquilos com vinhas em Le Mesnil-Sur-Oger, o grande spot da região, a comuna mais cobiçada, berço dos melhores Chardonnay da Salon e da Krug, entre outros; e, a fechar, um belo jantar de leitão no hotel Les Berceaux, em Épernay, com vinhos da Quinta das Bágeiras, oferecido por Mário Sérgio a cerca de duas dezenas de convidados, incluindo alguns produtores de champanhe.

Mário Sérgio levou o assunto tão a sério que se fez acompanhar de Ricardo Nogueira, proprietário e exímio assador do restaurante Mugasa (Fogueira, Anadia). Os dois leitões foram comprados no dia a um pequeno produtor local e assados num forno cedido por um emigrante bairradino. Apesar da dificuldade logística, chegaram quentes e estaladiços à mesa e tão ou mais saborosos do que os melhores leitões da Bairrada. Ricardo não foi levantado em ombros, mas merecia, e os tintos das Bágeiras deixaram os convidados franceses com água na boca, a começar por Pascal Agrapart, que haveria de nos receber no dia seguinte na sua adega, para dar a conhecer mais alguns dos seus vinhos (fabulosos o Complantee, proveniente de uma vinha com várias castas misturadas, e o Exp.07, um brut nature de Chardonnay), numa última e gloriosa prova de champanhe antes do regresso a Portugal.

--%>