Dois criadores de um vinho que no simples espaço de uma década conseguiu ser elevado ao estatuto de um dos vinhos lusitanos mais reconhecidos e cobiçados dentro e fora de fronteiras. Um fenómeno tão extraordinário que poderia facilmente ser entendido como um case study na afirmação fulgurante de um projecto.
Quando nasceu o primeiro Pintas, em 2001, Sandra Tavares da Silva e Jorge Serôdio Borges ainda não tinham nada de concreto para além do sonho de produzirem um vinho de vinhas velhas. Para além de uma visão quase utópica de um estilo de vinho que ambos idealizavam, não dispunham de mais nada — vinhas, adega, marca ou estratégia. Mas tinham aquilo que é o maior capital possível, um sonho e uma visão, uma utopia, um projecto comum, um compromisso a que Sandra Tavares da Silva e Jorge Serôdio se entregaram de corpo e alma. Talvez por isso tenham o seu projecto pessoal e intimista com o nome Wine & Soul, em comunhão com a entrega total ao vinho e ao projecto comum que abraçaram.
A verdade é que o vinho Pintas começou como uma utopia e uma vontade de afirmação de uma teoria que ambos compartiam. Ao contrário do que muitos afirmavam à época, e que muitos outros ainda hoje continuam a afirmar, Sandra Tavares da Silva e Jorge Serôdio Borges quiseram demonstrar que as melhores vinhas para Vinho do Porto Vintage, as grandes vinhas do Vale de Mendiz e do Pinhão, também poderiam dar azo a vinhos do Douro extraordinários. No fundo, queriam demonstrar que as melhores vinhas são boas por si só e pelas suas qualidades naturais, sem qualquer obrigatoriedade de ter destinado traçado logo à nascença, sem o fado de nascerem predestinadas e condicionadas para o vinho do Porto ou para o vinho do Douro.
Procuraram durante muito tempo por uma vinha excepcional no vale do Pinhão, em Vale Mendiz, local predilecto para a realização da sua utopia pessoal. Sabiam que teria de ser nesta zona da sub-região do Cima Corgo, no coração dos grandes vinhos do Porto Vintage, no local onde muitos dos grandes vinhos Vintage clássicos nasciam que mais facilmente poderiam provar a sua teoria. Acreditavam e continuam a acreditar na associação entre Vinho do Porto e vinho do Douro, numa relação directa e de grande proximidade entre Vintage e vinhos do Douro pujantes mas clássicos, empenhando-se em demonstrar que um grande vinho do Douro poderia nascer das vinhas clássicas de Vintage.
A vinha onde mais tarde nasceu o Pintas exerceu um fascínio imediato na dupla mal a encontraram pela primeira vez. Foi amor à primeira vista, um amor tão fulminante que os fez desistir de procurar por outras vinhas. Decidiram comprar uvas da vinha e experimentando pela primeira vez as uvas desta vinha em 2001 naquele que viria a ser a primeira edição do Pintas. A história encarregou-se de demonstrar a evidência dos resultados.
O fascínio pela vinha redobrou. Comprar a vinha sem ficar dependente dos humores de terceiros passou a ser o objectivo supremo de Sandra Tavares da Silva e Jorge Serôdio Borges, tarefa que se mostrou difícil e de concretização tão duvidosa que a incerteza e o desespero os atingiu por mais que uma vez. Só conseguiram ultimar a compra dois anos depois, já em 2003, ano em que assumiram a plena propriedade dos dois hectares de vinha muito velha que se transformou na menina dos seus olhos.
Uma vinha velha com pouco mais de setenta anos e com aproximadamente trinta castas misturadas que entretanto foi sendo ligeiramente alargada à medida que conseguiram ir comprando pequenas parcelas contíguas à vinha inicial. Na disposição actual predominam as variedades Touriga Franca, Tinta Roriz e Rufete, enquanto as quebras pontuais na vinha velha têm sido reparadas com insistência muito particular nas castas Touriga Nacional e Sousão.
Num esforço logístico que como é habitual no Douro se tem mostrado complicado têm vindo a comprar pequenas parcelas de vinha velha contígua, algumas com pouco mais de cem ou duzentos metros quadrados. Por vezes limitam-se a conseguir adquirir mais uma ou duas carreiras de vinha adjacente num esforço titânico mas sempre lento de aumentar a área de vinha velha.
Fazem-se aproximadamente 5000 garrafas anuais do Pintas, uma gota de água no Douro, volume que dificilmente poderá ser superado dada a exiguidade da vinha. Convém não esquecer que o Pintas é um vinho de vinha incompatível com volumes superiores, condição que se reflecte no vinho e no carácter generoso do Pintas. Criado numa adega que se mantém simples e racional, com intervenções enológicas minimalistas, com muito aprumo e rigor, nasce um dos vinhos mais voluptuosos de Portugal. É seguramente um dos grandes de Portugal, um vinho de sedução pura, robusto e glorioso, um vinho de extremos, um vinho de tormenta e paixão.
Apesar do êxito tremendo do Pintas, apesar de terem os seus vinhos transformados em objectos de culto, Sandra Tavares e Jorge Serôdio continuam fiéis ao espírito e filosofia que sempre os tem acompanhado, a decisão de fazer vinhos de vinhas muito velhas, vinhos visceralmente durienses no carácter. Vinhos de produção muito limitada que manifestam de forma fidedigna a personalidade de cada vinha, o temperamento de cada terroir. Sempre com o propósito de intervir o mínimo possível, permitindo que sejam o terroir e o ano agrícola a proclamar a expressão do vinho, deixando a retórica para a vinha e para a natureza em detrimento da assinatura do homem.
São estes princípios que explicam que, apesar do sucesso inquestionável, as quantidades disponíveis se conservem tão limitadas, neste Pintas que continua a ser um vinho de garagem. Grandes vinhos que consagram uma visão muito especial do Douro.