Fugas - Vinhos

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O homem que faz gin com uvas em Cognac

Por Alexandra Prado Coelho

Jean-Sébastien Robicquet nasceu no meio do vinho e da vinha. Sendo da região de Cognac, não se afastou desse mundo mas decidiu abrir-lhe os horizontes e criou o G’Vine – gin feito com destilado de uvas e infusão de flor da videira.

“Os cereais são para o povo, as uvas para os reis.” Jean-Sébastien Robicquet, proprietário da Maison Villevert, repete esta frase quase tão frequentemente como uma outra: “Sou francês, por isso sou arrogante.” Ambas fazem parte do seu charme — e ele sabe disso. É um homem com uma história para contar. É um francês, herdeiro de uma família com longa tradição no mundo do vinho, que decidiu fazer gin… na região de Cognac.

Mas não se trata de um gin qualquer. O que diferencia o seu G’Vine é ser feito a partir da destilação de sumo de uva fermentado e não de cereais. Há, nesta aventura, uma espécie de statement cultural. O que Jean-Sébastien vem dizer ao mundo é que, sendo um homem do Mediterrâneo, é um homem das uvas. Reconhece que há uma fronteira cultural: “A produção agrícola de cereais está mais ligada ao Norte e as uvas mais ao Sul: cerveja versus vinho, trigo versus uvas.”

E, não satisfeito por a base do seu gin ser destilado de uvas, junta-lhe um outro elemento. Para além dos vários botânicos que o G’Vine tem, incorpora um muito especial: a delicada flor da videira, que vive apenas uns 15 dias por ano.

Estamos na propriedade de Jean-Sébastien em Cognac, uma casa do século XVI, com vinha, que pertencera à sua família durante 250 anos e que ele recuperou em 2009 comprando-a ao anterior proprietário. Viemos no início de Julho para tentar assistir à floração da videira, mas perdemo-la por poucos dias. Neste momento, por entre as folhas, começam já a surgir as minúsculas bolinhas verdes que irão transformar-se nos bagos.

Por isso, as únicas flores que vamos ver são em fotografia na sala das provas da Maison. Jean-Sébastien organizou o espaço da casa de forma a poder contar melhor a sua história. Há uma primeira sala cheia de livros sobre “a importância das uvas para a civilização” e outra sobre o processo de destilação e os inúmeros botânicos que podem ser usados.

“A destilação é uma concentração da alma, do espírito. O que se faz é capturar a alma, neste caso a suavidade das uvas”, diz o nosso anfitrião. Quando se obtém o destilado, neutro (não é relevante que castas são usadas), tem-se “a tela branca na qual vamos imprimir as cores que queremos”. Poderia ficar por aí e trabalhar a concentração do álcool e o envelhecimento, para criar cognac, como todos fazem nesta região.

Mas ele não queria ser mais um, até porque conhecia bem os altos e baixos do negócio do cognac, tendo no passado trabalhado com alguns dos “gigantes” da região, como a Moët-Hennessy.

Assumiu, por isso, uma estratégia comercial muito clara: “O oceano vermelho é onde andam todos os tubarões, a matar-se uns aos outros. É uma luta contínua pela sobrevivência. O vermelho vem do sangue. O oceano azul é onde não está mais ninguém. Temos que encontrar o nosso oceano azul e ir para lá.”

É aí que entram os botânicos. O destilado vai transformar-se em gin — a única condição para ser classificado como tal é que tenha como botânico dominante o zimbro. “A partir daqui começamos a imprimir as cores que queremos.” Pede-nos para começarmos a prova pelo copo que tem o destilado neutro a partir das uvas e de seguida o feito a partir de cereais e incentiva-nos a notar a diferença entre o corpo de um e do outro, o primeiro amaciado pela doçura das uvas e o segundo marcado pelo lado mais seco dos cereais. De seguida provamos um com a infusão dos cerca de 10 botânicos e, por fim, apenas com a infusão da flor de videira.

Da primeira vez que pensou em colher as flores da videira, em 2004, não sabia ainda o que iria fazer com elas (o primeiro G’Vine sairia para o mercado em 2006). Deixou algumas caixas cheias numa sala, com ar condicionado, durante um fim-de-semana e quando voltou a sala tinha-se enchido de um intenso cheiro tropical. Infelizmente as flores estavam já estragadas. “Mas a emoção provocada por aquele cheiro ficou gravada em mim”, conta. “A flor tem nela o que vai ser o sabor daquelas uvas. E aí podemos distinguir as várias castas, pode ser mais tropical, mais brioche, mais fruta vermelha.”

Depois da infusão, os dois líquidos (o da infusão dos botânicos e o da flor) são novamente destilados para se fundirem. “A destilação é o mais profundo casamento, são dois líquidos que se tornam vapor e que se fundem num único.”

O resultado é o Floraison, um gin de 40º “não apenas elegante mas inimitável”, diz Jean-Sébastien, que recusa a ideia de que, como dizem alguns, este seja um gin mais feminino. Acedeu, no entanto, a fazer outro, um pouco mais forte, para “quem gosta mais de beber o tipo London Dry”. E nasceu o Nouaison (43,9º), feito com a infusão dos pequeníssimos bagos de uva que surgem após a flor. “É a evolução do Floraison, menos floral, mais especiado.”

Com os dois gins percebeu que tinha conseguido um produto único, inovador — que estava no seu “oceano azul”. “Estou a trabalhar para a minha visão, o meu mundo. Sejam bem-vindos ao mundo das uvas. Sejam bem-vindos ao mundo da civilização.”

Garante que é por ter um produto diferente que vai sobreviver à febre do gin tónico que nos últimos anos tomou conta primeiro de Espanha (o melhor mercado para o G’Vine a par da França), depois de Portugal e a seguir de vários outros países. Surgiram entretanto mais de mil marcas de gin. “O que as pessoas querem é que um gin tenha uma história. Quando só ficarem dois ou três, o nosso vai continuar a ter uma história para contar.”

Além disso, acrescenta Jean-Sébastien, há a questão do estatuto. “Quero dar a experiência do luxo numa garrafa a um preço acessível [em Portugal, uma garrafa de G’Vine custa cerca de 40 euros]. Acredito firmemente que o G’Vine é um luxo na categoria dos gins.”

E é por aí que quer conquistar também partes do mundo que não “têm o ADN do vinho”, como a Ásia. Sabe que nesses mercados não pode, como na Europa Mediterrânica, apelar à relação profunda das pessoas com a cultura do vinho e da vinha. “Os asiáticos podem não se relacionar com isso mas relacionam-se com o desejo de ter uma experiência. E com a ideia de estatuto”. Porque, afinal, “os cereais são para o povo, as uvas são para os reis”. E quem melhor do que um “francês arrogante” e charmoso para nos dizer isto?

Um gin vindo do século XV

Antes de se lançar a fazer gin, Jean-Sébastien Robicquet quis estudar tudo o que havia sobre o tema e socorreu-se da ajuda de um especialista, Philip Duff. Num livro sobre a história da genebra (o nome original nos Países Baixos, a partir da palavra juniper/zimbro), encontraram a referência a uma receita datada de 1495. Foram procurá-la e descobriram-na, no holandês original, num manuscrito guardado na British Library.

Jean-Sébastien não resistiu e decidiu recriar a bebida para perceber como se bebia gin há 500 anos. Até porque a receita tinha para ele uma coisa que era fundamental: o destilado base era feito com uvas, exactamente aquilo que ele quer fazer com o seu G’Vine (ver texto principal).

Depois de vários testes e correcções — a receita original era vaga sobretudo em quantidades e levantava alguns problemas de tradução — surgiu o Gin 1495. A caixa, com uma edição muito limitada, inclui o Verbatim, o original numa garrafa opaca cor de terra acinzentada, e uma versão recriada, o Interpretatio, na qual o nível de especiarias usado é inferior e o lado cítrico é acentuado, para a aproximar do gosto dos consumidores de hoje mantendo, contudo, muita da personalidade original.

“Há 12 noz-moscada neste líquido”, avisa Jean-Sébastian ao abrir uma garrafa de Verbatim. Provamos e, para além do elevado nível de álcool (não sabemos qual seria no século XV porque não se faziam medições), o que domina totalmente a boca é uma explosão de especiarias — uma confirmação, se tal fosse necessário, da importância que estas tinham em plena época dos Descobrimentos.

O Gin 1495 não é um projecto comercial, tendo sido feitas apenas 100 caixas. Pretende sobretudo ancorar os outros produtos da Maison Villevert, de Robicquet, numa relação com o passado que, espera o produtor, faça deles mais do que simples bebidas espirituosas.

É a ideia de renascimento, de criar o futuro a partir do passado, que move Jean-Sébastien Robicquet. Por isso, o Gin 1495 está apenas disponível para leilões em casas especializadas e museus de gin. Em Portugal há um exemplar da caixa, unicamente para exposição, na Gin Lovers do Príncipe Real, em Lisboa. 

A Fugas viajou a convite da Maison Villevert

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