Fugas - Vinhos

Nelson Garrido

Vinhas extremandas

Por Rui Falcão

É tempo para falar, por exemplo, do mais importante no mundo do vinho, daquilo que é a base mais que indispensável para a produção de vinho, as vinhas.

Há quem lhe chame silly season, há quem lhe chame a época das notícias ingénuas, infantis e sem grande substrato que surgem por esta estação. Há também quem simplesmente acredite que, chegado o período estival de férias, a maioria deseje uma leitura mais simples, fácil e que não obrigue a grandes teorias, esforço ou períodos de reflexão. Tempo para falar de assuntos menos pesados, deixando algum espaço para curiosidades, acasos, pequenas histórias do mundo do vinho nem sempre pertinentes durante o ano restante.

Tempo para falar, por exemplo, do mais importante no mundo do vinho, daquilo que é a base mais que indispensável para a produção de vinho, as vinhas. Vinhas que, segundo a lógica tradicional, deveriam estar amarradas aos países de climas temperados, divididas algures entre o hemisfério Norte e Sul, mas sempre dentro dos paralelos clássicos que delimitam o cultivo da vinha. Nem todos se deixaram amarrar a esses padrões clássicos, lançando-se na empreitada de plantar vinhas em locais improváveis que a maioria das pessoas de bom senso hesitaria em endossar.

Algumas por se situarem demasiado a norte, já demasiado próximo do frio glacial dos pólos, outras por se situarem demasiado próximo aos trópicos, algumas mesmo na linha que separa os dois hemisférios da Terra. Outras por assentarem em climas e condições de aridez tremendas, algumas mesmo em pleno deserto, outras por estarem circunscritas a terrenos onde imperam condições de humidade suprema com climas de monção que intimidam pelo excesso de água. Outras ainda por se situarem demasiado próximas a vulcões ou outros perigos da natureza que poderão destruir o esforço de uma vida numa questão de minutos.

Entre as vinhas mais inacreditáveis podemos incluir as vinhas da ilha do Fogo, em Cabo Verde, ilha dominada pelo grande vulcão e onde habitam pouco mais de mil almas. Num terreno seco e árido que é tantas vezes comparado com uma paisagem lunar, as vinhas sobrevivem com dificuldades óbvias na cratera do vulcão activo que ainda muito recentemente deu sinais de vida, deixando um rasto de destruição à passagem da lava. Sobrevivem dois pequenos produtores, o mais conhecido dos quais a Associação dos Agricultores de Chã, que insiste tenazmente na aventura de plantar vinhas numa terra quente e árida que é devastada pelas erupções vulcânicas com uma regularidade inquietante. Apesar da recorrente falta de chuva, as plantas conseguem sobreviver graças à humidade matinal que as montanhas aprisionam e que se deposita nas folhas aliviando a pressão da canícula.

Sorte diferente protege uma das vinhas mais insólitas do Egipto e do planeta, que se situam em pleno deserto do Sara, nas paisagens quase inóspitas de Luxor, onde as condições são tão extremas que a filoxera nem sequer é preocupação possível, já que o temível insecto não consegue resistir às conjunturas naturais do deserto. Mais ainda que os dias escaldantes, o calor extremo, as noites frias e as longas horas de sol, o maior drama da viticultura local é a salinidade das águas do Nilo, que acaba regulada pela injecção de sulfuroso e uma mistura de cebolas selvagens que ajudam a mitigar o problema.

Para obviar aos meses mais quentes do ano, onde seria quase impossível assegurar a sobrevivência das plantas e manter a salubridade dos cachos, as vinhas foram sendo condicionadas a um período de dormência que se prolonga durante os meses de Julho, Agosto e Setembro, reajustando o período de actividade de Outubro a Junho, quando terminam as vindimas no deserto egípcio.

Se neste momento acredita que o vinho não passa de uma curiosidade local para impressionar e divertir turistas, fique a saber que os vinhos são exportados para diversos mercados, brancos incluídos. Não deixa de ser curioso que, apesar dos problemas de salinidade, da falta de nutrientes no solo e das limitações climáticas que obrigaram a antecipar as vindimas e o ciclo da planta, as práticas agrícolas são inteiramente orgânicas, mantendo a certificação das vinhas no patamar de vinho biológico.

As vinhas do produtor francês Domaine Royal de Jarras debatem-se com problemas simultaneamente semelhantes e opostos, manifestos no excesso de salinidade nas águas costeiras da região francesa de Camargue e numa disponibilidade de água tão evidente que todos os anos as vinhas acabam submersas por períodos que por vezes se estendem por mais de um mês. As vinhas situam-se nas regiões pantanosas da Camargue, onde água, sal e areia se misturam numa amálgama pouco habitual para a implementação de vinhas.

As areias profundas actuam num estilo semelhante à região de Colares, criando uma barreira natural para a invasão da filoxera que transformou o Domaine Royal de Jarras num território imune às mazelas da praga que quase devastou as vinhas do velho continente europeu. As referências habituais à salinidade presente nos vinhos do produtor poderão ser ainda mais facilmente aceites e compreendidas quando se descobre que as vinhas bordeiam as salinas da região envolvendo a paisagem numa imagem muito pouco habitual para a realidade europeia.

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