Fugas - Vinhos

Daniel Rocha

Quinta Foz de Arouce

Por Rui Falcão

Andamos tão distraídos com o apelo de regiões que se fizeram justamente famosas como o Douro e Alentejo que por vezes nem damos conta do que se faz em outras denominações nacionais.

Sim, por vezes acabamos por ganhar ousadia para dar uma espreitadela a outras regiões, fugas breves e ocasionais que logo renegamos para voltar ao que consideramos ser o porto seguro das regiões mais mediáticas.

Não há nada de errado nesta postura  mas enquanto caminhamos ordeiramente ao ritmo das duas principais regiões esquecemos que o país e o universo do vinho não se medem apenas por estas duas regiões nem se limitam ao que Douro e Alentejo fazem.

Muitos dos grandes vinhos portugueses estão a nascer fora destas duas denominações clássicas, ou, e talvez ainda mais interessante, em muitos casos fora de qualquer das denominações de origem, sejam elas menos clássicas ou simplesmente inexistentes. A originalidade e a qualidade não são garante exclusivo das regiões e cada vez nascem mais vinhos interessantes fora do ambiente tradicional que nos habituámos a conhecer e valorizar. 

Não que exista qualquer inconveniente, desvantagem ou simples constrangimento nos valores do classicismo. O discurso contemporâneo esvazia com frequência o espaço natural dos valores da tradição, valores que são intrínsecos e naturais ao mundo do vinho. A tradição pode mesmo ser instigadora de vinhos extraordinários, vinhos singulares e representativos de uma identidade que o modernismo não pode nem quer repetir. Quando à tradição se alia o tempero certo de modernidade, quando o progresso entende os valores da memória, então conquistamos o privilégio de poder desfrutar de vinhos de rara beleza, personalidade e complexidade.

De entre muitos nomes possíveis para ilustrar esta ventura deixem-me apresentar um produtor notável, a Quinta de Foz de Arouce. Um produtor pleno de carácter, consistente e de qualidade irrepreensível, um produtor singular que demonstra ser possível fazer vinhos extraordinários fora das principais regiões. Na Quinta de Foz de Arouce tudo é diferente, original, autêntico e muito particular. A começar pela localização fora dos grandes circuitos e fora de qualquer denominação de origem, sita nas serranias bravias da Lousã. Uma terra de ninguém quando falamos de vinho, protegida pelas serras da Lousã, Miranda e Penela, apartada das denominações mais prestigiadas de Portugal.

Por falta de alternativas legais o produtor acabou amordaçado sob o designativo Beira Atlântica, título esbatido e que pouco singulariza ou caracteriza os vinhos de alguém tão original. Já o disse no passado, um atropelo que a razão e o coração deveriam transformar permitindo a sua elevação à condição de denominação de origem autónoma que compreendesse as vinhas históricas deste produtor. A Quinta de Foz de Arouce merece por direito próprio a distinção de denominação autónoma, o equivalente nacional ao “Vino de Pago”, uma denominação de origem que Espanha implementou a nível regional das autonomias e que foi desenhada para os produtores com um percurso histórico documentado que segue o contorno da propriedade. O historial rico, o carácter único, a qualidade elevada e a sua singularidade congénita candidatam a Quinta de Foz de Arouce a ser um dos primeiros produtores a merecer tal sorte.

Há algo de mágico nos vinhos da Quinta de Foz de Arouce, detalhes e apontamentos que transformam os vinhos deste produtor tão original em vinhos notáveis. Grandes traços que revelam uma personalidade carregada, subtilezas e nuances que determinam vinhos com coração e alma, vinhos com identidade, originalidade e sensibilidade. Em nenhum outro local de Portugal a casta Baga consegue proporcionar vinhos com esta dimensão e elegância, com esta generosidade e entrega, com este garbo e distinção. Porque os vinhos da Quinta de Foz de Arouce, nascidos na solidão das serranias, apresentam-se como um dos exemplos portugueses mais decisivos de vinhos elegantes e bem proporcionados, vinhos envoltos em mistério, vinhos de meditação que não se entregam desde o primeiro instante, vinhos pujantes mas aprimorados, ligeiramente rudes e encrespados mas terrivelmente educados vivendo num mundo permanente de contrastes e contradições que os transformam em vinhos temperamentais e de carácter forte.

A estrela da casa tem sido o Quinta de Foz de Arouce Vinhas Velhas de Santa Maria, um vinho extreme da casta Baga que nasce de uma vinha velha com mais de setenta anos que foi plantada num local tão inóspito que chega a intimidar pela severidade da localização. Uma vinha extraordinária na exposição e na expressão de um terroir que é único e irrepetível. Uma vinha que está reflectida num vinho que é ele igualmente irrepetível e inimitável, uma vinha caprichosa e de velhas finuras.

Curiosamente uma vinha da casta Baga que nada tem a ver com os Bagas da Bairrada. Na Quinta de Foz de Arouce, e neste vinha em particular, os vinhos surgem com uma expressão mais urbana, civilizada e cosmopolita, por vezes numa postura mais carnuda e opulenta enquanto outras vezes numa atitude mais delicada e aristocrata. Vinho de alma, coração, e de entrega generosa, vinhos telúricos no apego à terra e às tradições, vinhos excepcionais na originalidade e honestidade. A edição Vinhas Velhas de Santa Maria é especialmente fidalga e temperamental num vinho que apesar de poderoso é tremendamente cortês e aprimorado. Um grande vinho, profundamente português na alma e na expressão. Paradoxalmente é talvez o vinho tinto mais bordalês de Portugal.

Um vinho clássico, tradicionalista, conservador e sem nenhum truque ou artifício de adega, um vinho tinto elaborado com uma casta difícil como a Baga mas que, apesar deste ponto de partida, resulta tão elegante, fino, focado e deliciosamente civilizado. Uma prova mais que os estereótipos e os dogmas não têm lugar no mundo do vinho

--%>