Fugas - Vinhos

Nelson Garrido

Espumantes a mais?

Por Rui Falcão

Apesar de se produzir vinho em Portugal há milhares de anos, podemos sustentar que, mais que uma cultura de conhecimento, o que sempre existiu em Portugal foi uma cultura de consumo, o hábito de olhar para o vinho como parte integrante da dieta alimentar, encarando o vinho como algo que estava presente na mesa e sobre o qual pouco se pensava e pouco se sabia de forma mais educada ou formal.

Mais que o conhecimento das castas, mais que os segredos da viticultura, vinificação ou prova, discutia-se mais sobre a quantidade, deixando a qualidade para uma discussão secundária e mais prosaica.

Ao longo dos séculos os produtores preocupavam-se simplesmente em produzir vinhos brancos, tintos, rosados ou fortificados, de preferência em quantidades elevadas que conseguissem satisfazer um apetite voraz e uma mesa farta. Pouco se produzia para além destes quatro tipos de vinho. A maioria continuava a elaborar brancos, tintos e rosados, enquanto um grupo mais reduzido e circunscrito se dedicou aos vinhos fortificados, acabando por fundar o grande trio dos generosos nacionais, Vinho do Porto, Madeira e Moscatel de Setúbal.

A principal mudança deu-se quando há cerca de um século duas regiões nacionais investiram de forma mais ou menos decidida na tentativa de produção de vinhos espumantes, intenção que, tal como sempre nos movimentos pioneiros, beneficiou de momentos altos que foram seguidos por momentos de depressão em ciclos que se foram reproduzindo de forma natural. Claro que ao longo do tempo as técnicas foram variando e estes estilos foram ganhando diversidade à medida que os gostos evoluíam e os conhecimentos aumentavam.

Mas, apesar dessa evolução natural, cada uma das denominações nacionais foi conseguindo defender e perpetuar uma identidade e perfil mais ou menos identificável que justificava a criação e posterior existência das diferentes regiões. E de repente Portugal começou a sofrer uma nova mudança no perfil dos seus vinhos, estreitando por vezes a níveis absurdos as diferenças regionais, ao mesmo tempo que ia alargando o espectro de vinhos produzidos. Uma mudança que poderia ter sido benéfica mas que infelizmente se deve mais à voragem da moda, à falta de preparação, à tentativa de cobrir todas as frentes ou ao simples seguidismo de quem se limita a imitar os outros do que a decisões ponderadas e racionais.

A produção de vinhos espumantes que num ápice alastrou a todas as regiões e todos os climas é um desses momentos de perturbação, quando se sente que a realidade dificilmente tem argumentos para sustentar decisões. Ao contrário do que muitos pensam, produtores neófitos do estilo incluídos, não é fácil ser produtor de vinhos espumantes. Não é fácil dominar o estilo, perceber as múltiplas condicionantes que governam os vinhos espumantes, os truques e manigâncias da segunda fermentação em garrafa. Se para alguns, sobretudo para os que produzem em zonas de forte tradição do estilo como a Bairrada, os vinhos espumantes são uma fonte segura de rendimento, para muitos destes novos produtores o espumante não é mais que uma miragem de duvidoso alcance.

Pior ainda quando como no caso português a maioria das regiões não tem apetência nem condições naturais para produzir uvas adequadas à elaboração do vinho base, vinhos de forte acidez e de aromas comparativamente neutrais. Pior ainda quando como no caso nacional a maioria dos novos produtores de vinhos espumantes nacionais não está disposta a perder tempo e a custear os encargos financeiros com um segundo estágio prolongado em garrafa, condição indispensável para conseguir elaborar um vinho espumante de qualidade.

Salvo algumas honrosas e conhecidas excepções provenientes das terras mais altas e frescas, não será fácil criar um espumante de qualidade em regiões como o Douro, Dão, Ribatejo, Setúbal, Algarve ou Alentejo. Apesar da bondade de alguns ensaios, a maioria dos vinhos são pouco excitantes e pouco razoáveis. Mais que acrescentar valor aos produtores, alguns do quais de nomeada e com nome feito no mercado, acabam por os embaraçar com vinhos medianos que não valorizam a casa, acabando por retirar brilho a um nome feito. O que aparentemente não tem impedido que muitos produtores destas denominações, tanto tradicionais como neófitos nestas andanças, sem qualquer experiência no estilo e sem necessidade de diversificar o portefólio até à exaustão, ambicionem apresentar vinhos espumantes sustentando um estilo a que as regiões não se prestam. Talvez ainda pior, muitos deles com o propósito oculto de olhar para o vinho espumante como mais uma receita milagrosa para aproveitar as uvas menos interessantes.

Seguindo a velha máxima nacional que obriga a seguir o que os vizinhos fazem, cada vez mais produtores se deixam seduzir pelo sonho dos vinhos espumantes. Mesmo que não compreendam o estilo, que deixem a espumantização a cargo de terceiros, que a região onde se encontram não ofereça condições naturais para a criação desta família de vinhos. Riscos pouco compreensíveis quando todos sabemos que Portugal é um país de clima maioritariamente quente e soalheiro, onde a maturação, longe de ser um problema, é uma garantia. O que significa que a acidez, o argumento decisivo para a elaboração de vinhos espumantes, representa uma dificuldade de base que só poderá ser ultrapassada através de expedientes que forçam a natureza a produzir algo para a qual não está predisposta.

Tudo isto para acrescentar mais um vinho a um catálogo que muito provavelmente já se encontra demasiado preenchido. A dispersão em demasiados estilos ou em vinhos pouco consentâneos com a realidade leva a uma perda de foco naquilo que verdadeiramente interessa — produzir os melhores vinhos possíveis de forma natural para cada região. Não é fácil manter o carácter dos vinhos e a atenção necessária à tomada de decisão sobre os detalhes se o produtor apostar numa multiplicidade de vinhos que obrigam a demasiadas distracções e à dispersão da atenção.

--%>