Fugas - Vinhos

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Os novos vinhos de terroir da Quinta dos Murças

Por Pedro Garcias

Nem os próprios responsáveis do Esporão sabiam. A propriedade que compraram no Douro, a Quinta dos Murças, possui oito terroirs diferentes nos seus 50 hectares de vinha. A descoberta coloca esta quinta num outro patamar e levou já à produção dos primeiros vinhos de parcela.

Na estrada marginal que liga a Régua ao Pinhão, uma das mais belas do Douro e do mundo, há um ponto do percurso que prende todas as atenções. Quase a meio daquele desfile de quintas, miradouros e uma ou outra capelinha a espreitar no alto da montanha, quando o rio, sempre ao lado da linha de comboio, quebra um pouco o seu constante ziguezaguear, dois pequenos vales cortam as encostas abruptas em cada uma das margens e as aldeias de Covelinhas e da Folgosa ficam de frente uma para a outra, espelhando-se ambas nas águas do Douro. É um enlace prodigioso que a Quinta dos Frades, junto à Folgosa, onde passa a estrada principal, e a Quinta dos Murças, no lado de Covelinhas, servida pelo comboio, ajudam a sublimar.

 É impossível ficar indiferente à beleza geométrica da Quinta dos Frades e à orografia dramática da Quinta dos Murças, que se desdobra quase a prumo pela encosta. E se mudarmos o ângulo de visão para a outra margem o assombro é idêntico ou ainda maior, porque a Quinta dos Murças cresce mais na montanha e permite novas e mais amplas panorâmicas. 

Além de possuir uma frente de rio de 3,2 quilómetros, esta propriedade de 160 hectares, dos quais 50 são de vinha, não mostra tudo à primeira vista. É necessário cruzar as suas pendentes e dobrar o cume da encosta para se ficar com uma ideia mais precisa da sua beleza, dimensão e diversidade e perceber melhor os motivos que, em 2008, levaram o grupo Esporão a comprar esta quinta. Na altura, havia à venda no Douro outras propriedades de idêntica dimensão e bem mais apelativas, algumas com melhores acessos, orografia bem menos difícil e vinhas muito mais produtivas.

Na posse dos mesmos proprietários de Valle Pradinhos, em Trás-os-Montes, a quinta estava meio abandonada e não tinha grande notoriedade regional. Para quem vinha do Alentejo e do conforto da planície, era como aterrar em Marte. Na sua impressionante verticalidade, a Quinta dos Murças é o oposto da Herdade do Esporão. Mas deve ter sido essa gritante diferença e a possibilidade de fazer uma vitivinicultura mais Velho Mundo que estimulou a família Roquete a avançar. Em comparação com o Esporão, as perspectivas de produção dos 50 hectares de vinha dos Murças eram quase risíveis. Em contrapartida, a propriedade duriense oferecia patine, grandiosidade cénica, vinhas velhas e exposições e altitudes variadas. 

E tinha mais qualquer coisa que a própria família Roquete desconhecia: terroirs múltiplos. Tirando uma ou outra ilhota de granito, o Douro é visto como um imenso mar de xisto, como um corpus de vinhas homogéneo, razão pela qual só existe em toda a região uma única denominação de origem para os vinhos tranquilos. Mas reduzir o Douro a um terroir só é um erro crasso. Para ficar a conhecer melhor o que tinha nos Murças, a família Roquete encomendou a um grupo de especialistas franceses, com grande experiência na Borgonha, um estudo dos seus solos. Depois de dissecar de fio a pavio todas as parcelas da propriedade e documentar tudo em centenas de páginas, o grupo de especialistas chegou a uma conclusão surpreendente: na Quinta dos Murças existem oito terroirs diferentes.

 Os primeiros vinhos da aventura do Esporão no Douro já tinham deixado muito boas indicações. Mas esta descoberta pode levar o projecto da Quinta dos Murças para um patamar ainda mais alto. A ideia agora é preservar tudo ao máximo e continuar o processo de conversão de toda a propriedade para modo biológico, uma aposta de que os proprietários, em especial João Roquete, o responsável máximo pelo projecto, são os maiores entusiastas. A aposta em vinhos cada vez mais naturais e autênticos começa na vinha e estende-se à adega, onde os melhores tintos de quinta são produzidos com recurso a leveduras indígenas e em lagares de granito com pisa a pé. Fermentar com leveduras indígenas, para que os vinhos expressem fielmente a natureza do lugar e das castas, é sempre uma operação arriscada, “mas é no risco que se fazem os grandes vinhos”, justifica José Luis Moreira da Silva, o enólogo residente.

Desde que chegou ao Douro, o grupo Esporão não tem parado de fazer investimentos na adega e na drenagem da quinta, cuja verticalidade quase desafia as leias da física. Há vinhas com mais de 45% de inclinação e os antigos proprietários ainda tentaram, sem êxito, instalar pequenos teleféricos, do género dos que se usam na Suíça. Uma dessas parcelas muito inclinadas foi a primeira vinha ao alto a ser plantada no Douro. Data de 1947 e é dali que vêm as uvas para o novo topo de gama da quinta, o tinto Quinta dos Murças VV47. “VV” de vinhas velhas mas também de vinha vertical. O primeiro vinho é da colheita de 2012 e acabou de chegar ao mercado. É um tinto extraordinário, um vinho de uma parcela com diferentes castas (Touriga Nacional, Touriga Franca, Tinta Roriz, Tinta Amarela, Barroca e Sousão, entre outras), de aroma limpo e vivo, com muita fruta madura e também muitas notas frescas e apimentadas e de sabor intenso e refinado. 

Na nova gama de vinhos com a chancela Quinta dos Murças (só tintos), já idealizada com base nos diferentes terroirs da propriedade e na qual só entram uvas próprias (a gama Assobio, mais de combate, passa a ser feita apenas com uvas compradas a agricultores locais), entram ainda o Quinta dos Murças Reserva (um dos melhores vinhos do Douro no seu segmento), o Quinta dos Murças Margens e o Quinta dos Murças Minas. Enquanto o VV47 e o Reserva só saem para o mercado ao fim de três, quatro anos, o Margem e o Minas são lançados logo no ano seguinte à vindima.

É uma aposta ousada mas que, a avaliar pelos vinhos de estreia, ambos de 2015, pode ser bem sucedida. São dois tintos cheios de elegância, muito vinosos, com fruta graciosa e limpa, taninos maduros e uma belíssima frescura. Com estágio em barricas usados, têm ambos a marca Douro (de forma mais robusta o Margens, que deverá ter um PVP de 30 euros, o dobro do Minas). No fundo, o que os responsáveis dos Murças procuram com estes dois vinhos é replicar nos DOC Douro a nova tendência dos Porto Vintages, que já são feitos de forma a poderem ser bebidos cada vez mais novos, quando a fruta ainda domina todo o bouquet; e, ao mesmo tempo, explorar de diferentes formas o mundo novo que se abriu com a descoberta dos especialistas franceses. 

 

 

 

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