Fugas - Vinhos

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Há novos caminhos a cruzarem-se no Dão

Por Manuel Carvalho

A Caminhos Cruzados tem apenas quatro anos de vida mas a consistência do seu projecto e dos seus vinhos aponta para uma experiência de vida bem maior. Resultado de uma aposta numa gestão aberta e moderna, num conceito que alia a tradição e o futuro e numa equipa que sabe o que faz.

Na orla de uma estrada secundária nas imediações de Nelas, bem no coração do Dão, há uma vinha nova a compor o cenário de onde se ergue uma obra futurista. Ao primeiro olhar, o edifício faz lembrar um X espetado na terra. É fácil perceber porquê: o simbolismo da peça de arquitectura contemporânea, toda em betão esbranquiçado, pretende ajustar-se a uma ideia baseada no cruzamento de gerações, de experiências, de conceitos sobre o Dão e o seu futuro. A obra foi desejada, pensada, projectada e construída para ser a adega da empresa Caminhos Cruzados e os declives dos tectos que se cruzam no seu corpo exprimem bem o significado da marca e a natureza dos seus projectos. Até porque, mais do que na silhueta do betão nessa vinha ao lado da estrada perto de Nelas, o significado de Caminhos Cruzados tem de se procurar nos vinhos que está a lançar: um cruzamento do Dão clássico com o desejo de lhe acrescentar juventude e modernidade.

Não há muitas histórias no vinho português que tenham registado um sucesso tão rápido como o que o empresário Paulo Santos e a sua filha Lígia Santos conseguiram. A empresa nasceu em 2012 e desde então recebeu um prémio da empresa revelação da Revista de Vinhos e no último concurso da ViniPortugal ganhou um Grande Ouro com um branco da casta Encruzado que se encontrava no mercado por uma módica quantia de dez euros. E, talvez ainda mais importante, passou de uma produção de 10 ou 15 mil garrafas por ano para um volume que este ano se vai aproximar das 400 mil, metade das quais são exportadas para diversos países. A adega que faz um X na paisagem deve estar pronta no final deste ano e será o ponto de partida para um novo impulso da Caminhos Cruzados. Não tanto pelo volume (está preparada para processar 400 mil litros de vinho), mais pela tentativa de aumentar a sua qualidade.

O pai Paulo foi o homem que puxou o gatilho do projecto, Lígia é o seu rosto na gestão e na comercialização, e se a família Santos joga na posição de ponta de lança, o músculo da empresa, a consistência dos seus vinhos, está na dependência de Carlos (“Carloto”) Magalhães e de Manuel Vieira. Carlos é o rosto dos vinhos Palato, do Douro Superior e, para lá de enólogo, é um especialista nas ciências da vinha. Vieira é, apenas, o “senhor Encruzado”, o enólogo que para lá de ter desempenhado um papel crucial na redescoberta desta enorme casta do Dão, foi a alma e o rosto dos vinhos da Quinta de Carvalhais, da Sogrape, durante cerca de um quarto de século. Também aqui os caminhos entre uma família desejosa de fazer algo novo e os de uma dupla experiente e reputada nas coisas do vinho se cruzaram.

Foi por acaso, ou quase por acaso. Os Santos eram pequenos produtores de vinho na pequena quinta do Barrocal. Lígia lembra-se dessas vindimas pequenas, das pequenas produções ou do detalhe de ver o avô servir-se de um garrafão com tampas cor-de-rosa. Um dia, o pai, um empresário têxtil que se baseou no Porto há uns 20 anos, pensou em engarrafar o vinho, quanto mais não fosse para oferecer. A ideia pegou e explodiu. “O pai é uma pessoa muito acelerada”, diz Lígia. O projecto nasceu como embrião “em conversas à mesa, com a família” e foi-se consolidando. A marca Titular foi comprada, as vinhas da quinta da Teixuga foram alugadas (e depois compradas) a adega bem no centro de Nelas foi arrendada e entrou em laboração, a equipa de enologia foi contratada em 2014 e, num ápice colocou-se a questão que aparece sempre que os projectos crescem: e agora?

O que estava em causa era a necessidade de haver uma gestão profissional para um negócio que ganhara dimensão. Lígia Santos estava nessa altura em Lisboa. A sua relação com o mundo do vinho não tinha ido muito para lá das experiências com um tinto ou um branco à mesa. Licenciara-se em Direito, fizera o mestrado na capital e trabalhava no gabinete de José Eduardo Martins – conhecido pela sua militância no PSD. Mudar de vida era para ela um desafio. Irrecusável: “Isto é um projecto da família e não fazia sentido que não fosse administrado pela família. Fazia-me confusão vir alguém de fora para gerir a empresa”, diz. Em 2014, a feição actual da Caminhos Cruzados estava delineada. Havia um dono para o problema da gestão, da parte comercial e do marketing, havia uma infra-estrutura, uma área de vinha em exploração que estava a crescer até os actuais 35 hectares e uma equipa de enologia que garantia boas perspectivas. Jovem, desempoeirada e dinâmica, Lígia converteu-se sem dificuldade. “Isto é um negócio apaixonante”, diz.

Seria no entanto mais um negócio se os seus vinhos fossem apenas mais uma meia dúzia de marcas no interminável catálogo da produção nacional. Era preciso um conceito, uma ideia. Alguma coisa diferente, até porque “o meu pai é uma pessoa que gosta de romper, de inovar”. Mas estava fora de causa prescindir da imagem e da identidade do Dão. Nas castas, por exemplo, a empresa só utiliza variedades regionais e dá-se ao luxo de ter uma pequena gama de vinhos só com Alfrocheiro ou Jaen. Mas, a ideia que germinou era a de acrescentar ao Dão “um cariz mais moderno e inovador, menos pesado”, diz Lígia. Paradoxalmente, foi por isso que um “clássico” da região como Manuel Vieira foi contratado. O seu saber seria a base para tudo o resto. A sua experiência e irreverência, também.

Porque uma coisa é fazer diferente e outra é fazer diferente e bem. Aí, a noção de que a invenção da roda numa região com os pergaminhos do Dão é perigosa, impôs-se. E a discussão sobre o que essa ideia da modernidade no vinho, também. “Há uma coisa que me faz confusão: a ideia de um Dão ultrapassado. É um sentimento que não está correcto. Houve imensa inovação nos últimos 20 anos: o uso de barricas na fermentação da Encruzado, a aposta na Jaen…”, diz Manuel Vieira. Lígia reforça a apologia do enólogo que a cada passo se insurge contra a “falsa inovação” - como a que leva algumas companhias ou enólogos a querer fazer brancos de uvas tintas. “Ele é um titã do Dão, não é nada antiquado. Tem até ideias loucas”, diz. E no elogio segue Carlos Magalhães. Pelo trabalho na adega, mas também na vinha. “Houve uma grande mudança na viticultura e isso ajudou imenso”, diz Carlos.

Com “uma dupla de enólogos engraçada”, nas palavras de Lígia, com solidez financeira, com um conceito e um projecto, a Caminhos Cruzados conseguiu ser diferente e não apenas porque querer ser diferente. Os vinhos da empresa vendem-se bem, sejam o Teixuga de 2013, de pequeníssima produção (1200 garrafas), que é o topo de gama da casa, sejam os Titular (80 mil garrafas), cujos preços variam entre os cinco e os 12.50 euros, ou as segundas linhas formadas pelos Terras de Santar e Terras de Nelas - o Titular Encruzado de 2014 está esgotado há oito meses. E, nos caminhos que se vão cruzando, dizem que o melhor ainda está para vir. “O grande salto vai ser dado quando tivermos a nossa adega”, diz Carlos Magalhães

Titular Colheita Branco 2015
87
Castas: Encruzado, Malvasia Fina, Bical
Graduação: 13%
Preço: 4,99€
Fresco e vivo, com fruta expressiva no aroma, sugestões apetroladas que lhe dão complexidade e graça e boas sensações minerais que persistem na boca. Um branco muito interessante, intenso na boca, com uma acidez muito afinada a envolver a fruta e a garantir frescura e persistência. Muito bom para o preço.

Titular Encruzado/Malvasia 2015
86
Graduação: 13%
Preço: 8,50€
Boa expressão aromática garantida pela casta Malvasia Fina. Nem tanto na intensidade, mas principalmente na qualidade das suas notas florais. Belo volume de boca, onde a Encruzado se combina bem com a maior tensão da Malvasia, produzindo um conjunto com profundidade, intensidade e persistência. Um bom exemplo a explicar a razão pela qual no novo Dão há cada vez mais casamentos entre estas duas casas.

Titular Encruzado 2015
90
Graduação: 13%
Preço: 10,50€
A edição de 2015 do Encruzado é talvez menos assertiva na boca e no nariz do que a sua antecessora. Mas o que falta em impulso, sobra em fineza e elegância. Este branco é por isso notável. Os seus aromas florais, com indícios de fruta de polpa branca madura, a integração harmoniosa da madeira impressionam ao primeiro contacto. Na boca a sua gordura torna-o “mastigável”, um certo picante da barrica e a sua acidez dão-lhe vivacidade e profundidade.

Titular Colheita Tinto 2013
88
Castas: Touriga Nacional, Tinta Roriz, Alfrocheiro
Graduação: 13%
Preço: 4,99€
Não há que enganar: pelo aroma constata-se de imediato que estamos na presença de um Dão na sua melhor forma – a expressão floral deste vinho, intensa e jovem é muito atraente. Na boca confirma-se a primeira sensação. Um tinto sedoso, com corpo mas com tanino polido, fresco e, acima de tudo, fino que dá enorme prazer beber. Um belíssimo vinho a um preço muito recomendável.

Teixuga 2013
93
Castas: Encruzado
Graduação: 13.5%
Preço: 35€
Este é um branco com madeira que até os amantes de brancos sem madeira têm dificuldade em recusar. Porque, apesar da fermentação em barrica ou do estágio, a presença da fruta continua a dominar o conjunto. Não é por isso um daqueles brancos resinosos e cansativos. É, pelo contrário, um vinho com uma complexidade própria, nos seus aromas que deixam transparecer sensações de toranja, no seu volume que lhe acentua a elegância, na sua acidez que lhe confere frescura. Um branco notável, que ainda há-de ganhar com uns anos de garrafa. Produziram-se apenas 1200 garrafas.

Titular Reserva 2013
89
Castas: Touriga Nacional, Tinta Roriz, Alfrocheiro
Graduação: 13.5%
Preço: 9,50€
A predominância da Touriga Nacional no lote pressente-se de imediato no aroma predominam os atributos florais características da casta temperados com notas de caruma e uma tosta ligeira e bem integrada da barrica. Na boca é macio, mas tenso, com toques de especiaria a aliarem-se a uma boa acidez para lhe proporcionar intensidade e persistência. Um tinto muito bem desenhado e conseguido.

Titular Jaen 2014
84
Graduação: 13%
Preço: 7,50€
A Jaen é uma casta muito especial. Os seus vinhos sempre fizeram parte da alma do Dão – para muitos a Borgonha de Portugal, principalmente no século XIX. A sua palidez na cor, a sua magreza de corpo e a sua acidez viva e fresca recomendam-nos para momentos descontraídos, embora a sua garra se adapte bem à mesa. Este Titular conserva em parte essa graça, no aroma a lagar, por exemplo, mas algures abdica da proverbial leveza da casta e assume-se mais como um tinto convencional.

Titular Touriga Nacional 2013
92
Graduação: 13.5
Preço: 12,50€
Este é um Touriga Nacional seriíssimo. Precisamente porque tem uma jovialidade e graça muito especiais. Se, como se diz, o expoente máximo da casta está no Dão, uma boa forma de o provar está neste vinho. No aroma expressivo de violeta e de bosque, tudo na intensidade e no recorde mais correcto. No excelente balanço na boca, com tanino polido mais muito presente e uma dimensão de fruta deliciosa, na profundidade, na acidez final e na persistência. É tão bom que o seu melhor ainda está para vir, após mais alguns anos de guarda.

Titular Alfrocheiro 2014
90
Graduação: 14%
Preço: 12,50€
O Alfrocheiro da casa só se produz em anos excepcionais e em pequenas quantidades – cinco mil garrafas na edição de 2014. O que é pena. Porque este é um vinho original e, principalmente, notabilíssimo. O seu aroma é muito original, com temperos de fruta preta, toques vegetais e chocolate branco. A sua garra na boca é tremenda – o que exige a companhia de pratos intensos. Um vinho com personalidade e alma, que impressiona os sentidos pela sua manifestação de especiaria, pela sua acidez, pelo vigor dos seus taninos que se conjugam na boca numa persistência notável. Muito bom.

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