A única não preocupação é a refeição tardia do dia de Natal, o momento em que cada família recria a sua versão original da chamada “roupa velha”, essa arte tão portuguesa de saber reciclar o que sobrou das refeições anteriores transformando-as em algo sublime e inventivo que certifica a propensão natural nacional para o improviso.
Muito provavelmente este ano a ementa não será muito diferente do costumeiro, seja essa memória consentânea com a tradição regional ou com a tradição familiar de cada lar. Para o bem e para o mal, não se inova particularmente nas refeições destas épocas festivas e pouco ou nada se muda nas tradições alimentares familiares desta quadra. Poucos fugirão do bacalhau ou do polvo para a ceia de Natal e ainda menos fugirão da imposição do peru assado ou do cabrito frito para o almoço natalício. Mas se a preferência gastronómica despertará poucas dúvidas para a larguíssima maioria dos portugueses, talvez o mesmo não se passe no momento da escolha do acompanhamento vínico, tema sempre sujeito a hesitações e mitos que obrigam a dúvidas existenciais.
A pergunta quase se podia resumir à eterna incerteza sobre qual o melhor estilo de vinho para acompanhar o bacalhau, se optar por um vinho tinto ou escolher antes um vinho branco para a harmonização. Mas as indecisões recaem igualmente sobre qual o tipo de vinho que deveremos seleccionar para o momento, qual a região, em que patamar de preço nos devemos situar e finalmente qual a quantidade a eleger. Ou se preferirem, qual a diversidade exigida, se um vinho basta ou se deveria antes alargar as escolhas, deixando a tarefa do discernimento aos convidados?
Num momento do ano em que todos recebemos amigos ou familiares em casa, num momento que privilegia a partilha, numa época onde se promove o convívio (mesmo que em alguns casos forçado), é fácil sentir uma boa dose de angústia perante a difícil decisão de qual a garrafa ou garrafas a abrir. Mais ainda quando se pensa nos tais vinhos notáveis que foram guardados propositadamente e com todo o carinho para uma data especial.
No meio de tantos familiares e amigos convidados haverá sempre quem revele pouca sensibilidade ou pouco interesse pelo vinho. Muito provavelmente essa percentagem estará mesmo em maioria, lançando dúvidas sobre se valerá o esforço de abrir uma garrafa especial que muito dificilmente será valorizada ou apreciada pela maioria. Por isso, e salvo a felicidade e coincidência de estar integrado numa família ou grupo de amigos especialmente motivados para o vinho, o Natal e as épocas festivas raramente são a melhor ocasião para abrir vinhos únicos ou vinhos mais extremados, que se afastam dos gostos mais fáceis e mais consensuais.
Talvez ainda mais que embarcar numa viagem regada com vinhos muito valiosos, deverá ter especial cuidado para escolher vinhos que sejam mais fáceis de entender, vinhos menos radicais e de percepção mais directa, que possam ser apreciados por todos. Deixe de lado aqueles vinhos que se aproximam mais de gostos cultivados que só o tempo conseguiu criar e que requerem uma abertura de espírito que só uma minoria poderia valorizar. O Natal não será a melhor quadra para abrir vinhos laranjas, vinhos sem fruta ou vinhos com muita idade, que os paladares formatados raramente valorizam.
Mas é seguramente o momento perfeito para abrir e beber algumas garrafas dos quatro grandes vinhos fortificados que fazem a glória de Portugal, Vinho do Porto, Madeira, Moscatel de Setúbal e o quase desconhecido Carcavelos. Por serem maioritariamente doces, os fortificados costumam ser relegados para o final da refeição, quando o paladar já está cansado e quando a fadiga inerente ao final de refeição já se instalou. Talvez por isso sejam raramente apreciados na plenitude e raramente consigam brilhar como deveriam. Porém, nem todos os vinhos fortificados são doces, podendo ser aproveitados para o início da refeição ou para os momentos que antecedem o repasto. Basta pensar em alguns dos vinhos do Porto brancos secos, ou ainda mais facilmente nos vinhos da Madeira secos, sobretudo o Sercial, que, pela sua secura e acidez viperina, ajudam a despertar as papilas gustativas para a refeição que se avizinha.
Quanto à eterna discussão sobre se o bacalhau deve ser acompanhado por branco ou tinto, não há muito a acrescentar. Qualquer uma das duas hipóteses é válida, variando mais um função do gosto pessoal e da forma de cocção do bacalhau. Se pensarmos na versão tradicional do bacalhau cozido com grão, a escolha é ainda mais difícil, dependendo claramente e sobretudo do gosto pessoal. Em qualquer dos casos será melhor optar por vinhos relativamente densos mas com uma acidez mais vincada, vinhos cheios mas simultaneamente elegantes e vivos. Entre as muitas regiões portuguesas, os vinhos que melhor cumprem estes critérios costumam provir do Dão, tanto nos brancos como nos tintos.
O peru é tão indistinto e cinzento nos aromas que qualquer vinho tinto poderá fazer a festa. Tenha apenas em conta o eventual recheio do animal para condicionar a escolha. O cabrito merece mais tempo e também aqui o Dão costuma dar excelentes resultados. Mas neste capítulo a escolha é muito mais variada e será fácil encontrar boas harmonizações em qualquer denominação portuguesa, onde não faltam bons exemplos de vinhos tintos.
E no final da refeição pode voltar aos vinhos generosos, optando por algo mais doce, que tanto poderá ser um Porto Colheita ou com indicação de idade, como um Moscatel de Setúbal, um Carcavelos ou um notável vinho da Madeira com indicação de idade das castas Boal ou Malvasia. No final, na senda da melhor tradição bairradina, continue com um copo de espumante que irá alegrar e refrescar o final de refeição.