Celebra-se hoje mais um final de ano, mais um virar de página que representa uma nova etapa na vida dobrando a esquina do renovar de votos de esperança por um ano novo que se aproxima. Passagem de ano onde é apetecível soltar os ventos de ânimo e festejo, nem que seja por um só dia até que a realidade nos force a regressar à rotina do dia-a-dia. Momento que reúne todas as condições para devolver espaço e tempo aos vinhos espumantes, vinhos que, apesar das longas prosas a garantir a sua serventia ao longo do ano, continuam a ser intimamente associados à ideia de celebração, cumprindo o seu fado de comemoração de entrada triunfal no ano novo, vinhos que continuam a estar predestinados ao brinde, à alegria e aos votos de bom sucesso.
Poderíamos até brindar com Champagne, Cava, Sekt, Prosecco ou qualquer dos muitos nomes de vinhos espumantes existentes no mundo. Felizmente tal não é necessário porque os espumantes nacionais estão bem e recomendam-se. É virtualmente impossível perceber as razões para que o chauvinismo português face aos vinhos estrangeiros não se propague ao mundo dos vinhos espumantes. É difícil perceber por que razão depreciamos e desprezamos tanto os vinhos estrangeiros, convencidos que produzimos os melhores vinhos do mundo para depois, quando chegamos aos vinhos espumantes, invertermos o sentimento assumindo que só o que é francês, espanhol ou italiano valerá a pena.
Não faltam os vinhos espumantes nacionais de qualidade. Na sua maioria são originários das regiões mais clássicas e tradicionais no estilo, mesmo se por vezes continuam a surgir agradáveis surpresas, algumas delas dos sítios mais inesperados. Se Távora-Varosa e Bairrada continuam a afirmar-se como as duas regiões mais empenhadas nos espumantes, assiste-se hoje ao despertar de outras denominações para a magia dos vinhos espumantes. E depois há realidades surpreendentes mas imensamente interessantes, exercícios de excelência como o que os vinhos Vértice fazem no Douro, um dos locais mais improváveis para a espumantização, ou os ensaios que algumas empresas fazem no Dão, Bucelas e Vinho Verde com resultados francamente animadores.
Como muitos já descobriram, não é fácil fazer vinho espumante, sobretudo quando felizmente insistimos em seguir o método clássico originado na região francesa de Champagne, o melhor método para criar uma bolha mais fina, elegante e intensa. Os resultados finais são muito melhores mas o custo é também ele superior, não só nos custos económicos directos como no tempo de imobilização das garrafas na adega. Muitos produtores, sobretudo nos espumantes mais tradicionais e de melhor qualidade, deixam o vinho repousar durante mais de quatro anos, chegando em casos excepcionais a deixar o vinho parado durante quase oito anos.
Os espumantes mais sérios, aqueles que realmente espelham o terroir e que exaltam as virtudes da terra e do homem, são os das três famílias com menor presença de açúcar identificados como bruto natural, extra bruto e bruto. A categoria bruto natural, que por ora ainda continua a ser pouco visível nas prateleiras, representa os vinhos espumantes que não beneficiam de adição de açúcar, vinhos sem correcções e sem maquilhagem edulcorante de qualquer espécie. As consequências de tamanha austeridade podem ser demasiado extremas para muitos apreciadores, redundando com frequência em vinhos verdadeiramente secos, fechados, severos e sisudos, mas que no entanto são o retrato mais fiel das vinhas e do vinho base.
As duas categorias principais, extra-bruto e bruto, são aquelas que usualmente simbolizam as categorias superiores dos vinhos espumantes. Por tradição têm sido aquelas que a maioria dos críticos, produtores e consumidores mais esclarecidos entendem como sendo as categorias soberanas dos vinhos espumantes. É também aqui que as escolhas são mais ricas e onde é possível encontrar vinhos de todas as castas, estilos e regiões de origem. Os restantes estilos, extra-seco, seco e doce, todos eles muito doces, apesar da escolha de substantivos não o dar a entender, são relativamente raros e quase sempre pouco interessantes, gozando de uma procura sazonal que quase se resume aos festejos do final de ano.
Condições que explicam o sucesso de algumas casas e a falta de complexidade, serenidade e subtileza de outros produtores, nomeadamente dos mais apressados em lançar os seus vinhos espumantes no mercado. A Murganheira é um dos nomes mais valorizados e venerados entre os vinhos espumantes. De entre o vasto leque de opções, salienta-se o Murganheira Grande Reserva Bruto Assemblage 2002, um vinho espumante com 14 anos acabado de lançar e que apresenta uma tonalidade amarela ouro muito pálido. Brilhante nas notas intensas de padaria, nos registos de torrada e brioche, bem como nos leves traços de licor, revela uma complexidade pouco habitual nos vinhos espumantes, apresentando-se simultaneamente delicado e fresco, viçoso, brilhante e revigorante, complexo e distinto. Surpreendentemente, é um vinho ainda com anos de vida pela frente.
Absolutamente distinto e imponente, embora hoje quase impossível de encontrar no mercado, vale a pena procurar e insistir no extraordinário Quinta das Bágeiras Grande Reserva Bruto Natural 2003, um espumante deliciosamente tradicional que se caracteriza por uma tonalidade amarela ouro carregada acompanhada por bolha fina e persistente. No nariz saltam de imediato ao olfacto as encantadoras e sedutoras notas de vinho velho assistidas por sintomas de uma oxidação discreta mas educada, massa levedada, iodo, alperce em calda, restolho e amêndoas torradas. A boca acompanha o arco-íris aromático imprimindo uma frescura notável que o prolonga suavemente na boca. Um grande espumante.
Num estilo eloquente, clássico mas muito mais jovial surge o duriense e emérito Vértice Chardonnay Brut Nature, um espumante com dégorgement recente em 2016, um espumante medianamente frutado e muito levemente floral, especiado e rico na expressão, com uma suavidade de boca quase comovente, uma alegria contagiante e uma frescura transbordante. Seco sem excessos, tenso na acidez, delicado na bolha, é um belíssimo espumante que pode rivalizar sem temor perante o que de melhor se faz no mundo.