Fugas - Vinhos

Nelson Garrido

O novo mundo do Douro

Por Rui Falcão

O Douro tem muitas faces, estilos e identidades. Poucas denominações nacionais ou internacionais se podem orgulhar de conseguir apresentar tanta diversidade.

Na região convivem vinhos tecnológicos e modernos em contraponto com vinhos visceralmente clássicos e rústicos no estilo, a maioria cheios de alma e carácter. Que uma região consiga produzir dentro do mesmo espaço geográfico vinhos tão díspares como espumantes frescos e complexos, a par de vinhos fortificados como o Vinho do Porto, diz muito sobre a complexidade e riqueza da região.

Uma denominação que está dividida em três sub-regiões com sortes diferentes. Se o Baixo Corgo e o Cima Corgo sempre se mostraram populares junto da produção e da ocupação humana, com quintas históricas que remontam a vários séculos, o Douro Superior continuou até muito recentemente a ser terra a desbravar, território intacto que quase se encontrava virgem da presença de vinha.

Uma sub-região recentemente humanizada para onde se virou uma mão cheia de produtores à procura de novas oportunidades na mesma medida que muitos dos preconceitos do passado foram sendo esquecidos. Por um lado, resolveram-se os problemas de acessibilidade do passado que deixaram de se apresentar como um obstáculo e condicionante. Mas a maior reviravolta deu-se pela mudança de mentalidade da região e pela entrada de novos produtores na região, alguns deles vindos de outras paragens, que desafiaram muitas das convenções do passado. Uma mudança que muito provavelmente poderá ser considerada como a maior contribuição para a transformação de paradigma do Douro Superior.

Claro que o passado nos ensinou conhecimentos e não vale a pena tentar escamotear a história apontando a região como um autêntico deserto. Sim, é mais que evidente que, apesar de distante e quase desértico, o Douro Superior já existia no passado, alimentando com as suas vinhas algumas quintas que com o passar do tempo acabaram reconhecidas com nomes prestigiantes elevando o nome Douro, e sobretudo Vinho do Porto, ao pináculo da criação vínica. Não podemos esquecer que o Douro Superior foi, e é, especialmente relevante nos vinhos do Porto, vinhos de lote que ganham com a madurez e robustez que os vinhos da sub-região acrescentam.

Mas também é verdade que o Douro Superior sustentava até muito recentemente uma relação quase de inferioridade, fosse ela genuína ou fantasiada, em relação às restantes sub-regiões do Douro, Baixo Corgo e Cima Corgo. Durante muitas décadas, estas duas sub-regiões foram a terra prometida onde todos queriam estar e onde se concentrava o grosso da produção dos vinhos do Douro e Porto. Uma realidade que a última década e meia se encarregou de contradizer, revolucionando os equilíbrios da região e deslocando o eixo do Douro muito mais para leste numa viagem para o interior do vale.

A mudança foi súbita e surpreendente pela intensidade e dimensão do fenómeno, alterando por completo a lógica do Douro. Para uma região que viveu durante dezenas de décadas numa quietude silenciosa e num conservadorismo inquietante, a mudança foi impetuosa e revolucionária. Aquela que era uma sub-região remota e quase esquecida, num ápice passou a nome da moda onde todos queriam ter um papel activo na transformação. Num piscar de olhos, muitos rumaram ao Douro Superior, aproveitando a ocasião para colocar um pé no novo mundo da primeira denominação do mundo a ser criada e regulamentada.

Diversos factores contribuíram para este despertar intempestivo. Mas as duas condições mais decisivas para o assalto ao Douro Superior foram a saturação das sub-regiões do Baixo e Cima Corgo, que já quase não tinham espaço para a criação de novas vinhas, tal como os preços desmedidos que começaram a ser pedidos nestas duas sub-regiões. Seria, no entanto, redutor afirmar que o movimento de deslocação para a sub-região se deveu exclusivamente a pressões geográficas ou financeiras. Para tal também contribuiu o atrevimento de muitos produtores, que compraram terras que em muitos casos nunca tinham tido o privilégio de fazer vinho. Por muito que isso possa parecer chocante, a presença da vinha em muitos locais do Douro Superior é recente e inédita.

Finalmente, convém não esquecer que sem a rega, sem a água do Douro e demais afluentes para garantir a viabilidade das vinhas novas, a epopeia moderna do Douro Superior muito provavelmente não teria acontecido. Sem a frescura da água que permitisse aliviar os efeitos de um dos climas mais secos de Portugal continental, onde por vezes passa quase um ano inteiro sem chover, a implantação da vinha continuaria a ser impossível com a força e entusiasmo com que tem sido promovida ao longo da última década e meia. Talvez esta realidade ajude a explicar a querença latente pela compra de terras com frente para o rio Douro. Condição que ajuda igualmente a explicar por que abundam as vinhas jovens e muito jovens, muitas delas quase planas e sem necessidade de recorrer a socalcos.

Com esforço e investimento, o Douro Superior ganhou estatuto e autonomia, vivendo um momento de afirmação e diferenciação. Há quem tenha chegado logo no início desta diáspora, há quem tenha chegado mais recentemente e há quem ainda esteja a chegar hoje ao Douro Superior. Há quem tenha investido de forma pesada e há quem tenha contado todos os tostões. Em qualquer dos casos, a história é a mesma, a de descobrir um mundo novo dentro daquela que é a denominação mais antiga e conservadora de Portugal. E o Douro Superior vive mesmo dentro deste estranho paradoxo de ser o novo mundo na denominação mais antiga do mundo!

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