Fugas - Vinhos

Maria João Gala

Espumante inglês, uma ameaça para Champagne?

Por Rui Falcão

Poucos vinhos simbolizam um juízo de luxo como o champanhe, o vinho por excelência sempre que consideramos celebrar os prazeres da vida, as conquistas, os momentos que pensamos serem de comemoração e evocação.

Ao longo de uma história rica de séculos, as frases célebres sobre o champanhe foram-se acumulando no imaginário popular, afiançando que o mesmo seria essencial nos momentos de conquista e derrota, indispensável para festejar os grandes e os pequenos momentos, imprescindível para engrandecer os momentos de alegria e para resistir às circunstâncias da tristeza.

Mas ainda mais que uma mera evocação de instantes de celebração, exultação ou encantamento, os vinhos da região francesa de Champagne conseguiram criar um ideal de luxo que se entranhou na memória colectiva social, um modelo aspiracional que nos levou a associar de forma indelével champanhe com pompa e opulência, esplendor e prosperidade, numa autêntica metáfora de sucesso na vida.

Apesar de a região francesa de Champagne produzir muitos milhões de garrafas anualmente, os seus produtores conseguiram adornar esta aura de prestígio sob o mito da escassez, sobre o conceito de exclusividade que traduz uma das melhores e mais eficazes mensagens de marketing alguma vez criadas pelo homem. Sempre que falamos de vinhos espumantes, aquilo a que todos aspiram, seja do lado da produção ou do consumo, é equiparar-se a Champagne, usar os nomes da região, comparar-se com a bitola que foi definida por Champagne.

Alguns países ou regiões tentaram criar nomes alternativos, símbolos que pudessem rivalizar de alguma forma com os vinhos de Champagne. Em Espanha tomou o nome Cava, em Itália surgiram os nomes Prosecco e Asti, a Alemanha chamou-lhe Sekt. Apesar dos resultados divergentes, cada país ou região conseguiu idealizar um nome que as circunstâncias e o saber condicionaram com sortes diferentes. Cava começou por ser um nome vendável que ganhou popularidade. Uma nomeada suficiente para que rapidamente o nome passasse a ser reconhecido como uma alternativa barata e suficientemente fiável aos vinhos de Champagne mais baratos.

Asti teve o seu momento de glória com o advento dos espumantes doces e muito doces de Moscatel, até que o mercado começasse a desfavorecer os espumantes ridiculamente doces, acabando por se perder em preços tão baixos que destruíram uma imagem de marca que, em abono da verdade, nunca tinha sido exemplar. Prosecco conseguiu manter custos de produção muito baixos sem ceder de forma gratuita num abaixamento de preços a que outras regiões não conseguiram resistir para ganhar quota de mercado, garantindo uma competitividade que ainda hoje se mantém e que passou a ser referência no segmento médio e baixo do mercado dos vinhos espumantes.

E se o designativo Cava acabou quase dizimado pelas guerras de preços absurdas que desvalorizaram o nome de tal forma que hoje muitos gigantes espanhóis já preferem não o usar, a região de Champagne nunca aceitou entrar nessa guerra fratricida que arruina tantas regiões europeias, Portugal incluído. Os produtores e as entidades regulamentadoras e certificadoras da região de Champagne sempre foram agressivos na defesa das margens económicas, garantindo retornos financeiros compensadores para todos os agentes económicos da região, desde os viticultores até ao comércio, desde os pequenos produtores até às grandes casas históricas de tamanho mastodôntico.

Um reinado que poucos têm conseguido beliscar na estratégia e, sobretudo, na qualidade dos vinhos do segmento superior da pirâmide hierárquica qualitativa. Tal como o Vinho do Porto ou o Vinho da Madeira não conseguem ser replicados em outros locais do mundo, também o champanhe não consegue ser reproduzido de forma fiel e transcendente  noutros locais do planeta. Ou pelo menos foi isso que foi sendo evidenciado ao longo dos séculos de tentativas e erro de muitos produtores em dezenas de territórios espalhados pelo globo.

Até que, de forma surpreendente, parte de Inglaterra começou a desafiar o status quo, anunciando vinhos espumantes que ameaçam a ordem do mundo do vinho. Há dez ou quinze anos, esta afirmação seria inverosímil e pouco credível. Hoje é um facto real que poucos para além dos franceses continuam a disputar de forma acalorada. São em parte consequência do tão propalado aquecimento global do planeta, que aumentou as temperaturas médias da região, permitindo maturações mínimas que se adaptam bem às necessidades dos vinhos espumantes.

Por uma coincidência matreira da natureza, os solos são iguais aos de Champagne, o clima começa a assemelhar-se ao clima tradicional de Champagne, as castas são as mesmas, as técnicas também e o estilo final está cada vez mais próximo. Por ora ainda é cedo para afirmar com segurança que os espumantes ingleses poderão alguma vez estar no mesmo patamar qualitativo do modelo original francês, mas nunca a região tinha estado perante um desafio tão próximo e inesperado quanto o lançado por Inglaterra. Uma afronta que não será fácil digerir pelo orgulho pátrio francês.

 

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