Fugas - Vinhos

Paulo Ricca

Identidade e convicção

Por Rui Falcão

Portugal é o país da diversidade, da originalidade, da excentricidade, das práticas estranhas na vinha e na adega, das singularidades que nenhum outro país segue e que poucos pretendem compreender.

Sempre que falamos de vinho, a realidade portuguesa é tão distante dos padrões internacionais que por vezes chega a gerar momentos de espanto pelos caprichos lusitanos. Uma divergência com os cânones habituais que gera reacções de espanto que poderão ser entendidas como um elogio ou como um simples esgar de incompreensão perante o que é diferente, perante o que se afasta dos modelos convencionais.

Uma originalidade ímpar que tem sido aproveitada como forma de promoção dos vinhos portugueses nos mercados internacionais, para diferenciar, num mundo que vive preso a padrões, moldes e outros espartilhos condicionantes do gosto e da pluralidade. Uma aposta estratégica que assume falar sobre práticas tão distintas e únicas no panorama internacional como as vinhas de castas misturadas, a pisa a pé, a utilização de lagares, a prática alentejana dos vinhos de talha ou a preferência clara e histórica pela arte do lote, quase sempre com recurso a variedades portuguesas que nenhum outro país ou região aproveitam. Técnicas e procedimentos que são encaradas como exóticas pelos demais países do planeta vínico, mas formas de fazer vinho tão alternativas e espantosas que acabam por ser capazes de criar um capital de simpatia que não é negligenciável. Para além, claro, de serem a nossa realidade histórica e aquilo que nos diferencia face ao resto do mundo.

Infelizmente, temos aparentemente cada vez menos orgulho e empenho na nossa diferença que serve como sinal de identidade. A cada dia que passa, desistimos enquanto país produtor de mais uma diferença, perdendo o que nos singulariza e nos distingue dos muitos países que produzem vinho. A cada dia que passa, parece que perdemos a capacidade de assumir essa andança contracorrente, mantendo-nos firmes nas nossas convicções.

No mundo do vinho, tal como em quase todas as empreitadas da vida, cada vez mais os projectos são condicionados pelos desígnios da moda, por aquilo que o sistema determina, sem ter em conta as crenças e o passado. Muitas das crises com que nos debatemos advêm mais porque queremos queimar etapas, renegar o passado, copiar o que os outros fazem, sem valores, sem amor-próprio por aquilo que nos é característico e intrínseco. Sem amor e respeito por um trabalho de identidade e espírito que foi sendo criado ao longo de séculos de tentativa e erro, sinais de um isolamento e um classicismo que também nos vinhos marca de forma tão indelével a alma portuguesa.

A cada dia que passa, vamos perdendo orgulho e conhecimento nas circunstâncias e nas razões para a excepção portuguesa, vamos perdendo interesse nas vinhas misturadas, vamos perdendo vontade de preservar a arte do lote, vamos perdendo querença e seriedade na preservação dos vinhos de talha, vamos perdendo determinação na defesa dos lagares, vamos perdendo o objectivo de manter a pisa a pé para além do seu lado folclórico e turístico.

Vamos perdendo o sentido da identidade e da qualidade, passando a medir-nos pela mesma bitola e com os mesmos argumentos com que se julgam os vinhos franceses, italianos, argentinos ou australianos. Um erro crasso de estratégia colectiva que iremos pagar a curto prazo. Para manter a identidade nacional, que é a única forma de nos diferenciarmos e valorizarmos de forma eficaz, há que sofrer, há que conseguir aceitar alguma capacidade de sacrifício. A identidade, como todas as coisas grandes da vida, tem um custo a pagar e raramente é oferecida de forma gratuita.

Sim, nem todos estão dispostos a pagar pela qualidade ou pela identidade. Mas como país produtor só nos podemos valorizar precisamente por essa diferença que nos separa de um mar de vinho indistinto e padronizado que tantos países conseguem colocar com maior consistência qualitativa e a preços muito mais sociais que o que os produtores portugueses conseguem. A identidade é a forma mais fácil de valorizar a imagem dos vinhos nacionais. Mas, mais importante ainda, é a forma de fazer entender os vinhos portugueses fora de fronteiras.

Até muito recentemente, os produtores portugueses, de resto tal como as entidades encarregadas da promoção dos vinhos lusitanos, eram dos poucos a promover-se de forma activa através das palavras tradição, diferença, originalidade. Mais que as palavras, eram dos poucos em que essa mensagem aparecia sustentada pelos factos. Infelizmente, esses mesmos factos começam agora a escassear, diluindo a autenticidade e o valor efectivo da mensagem.

A modernidade convencional ou a adopção de padrões internacionais não devem ser abraçados simplesmente por uma questão de comodidade. A originalidade pode ser um fardo pesado, porque infelizmente obriga a aplicar recursos para explicar o que é diferente. Mas os benefícios a médio e longo prazo são muito mais frutuosos que meras campanhas imediatistas que nos queiram equiparar aos restantes países produtores.

Por outras palavras, vale a pensa insistir na mensagem de autenticidade e singularidade que temos adoptado. Mas depois é obrigatório que os produtores não se esqueçam de aplicar estes critérios na prática e que o país não abdique da sua identidade e das suas tradições.

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