Fugas - Vinhos

  • Rui Gaudêncio
  • Rui Gaudêncio
  • Rui Gaudêncio
  • Rui Gaudêncio
  • Rui Gaudêncio
  • Rui Gaudêncio
  • Rui Gaudêncio
  • Rui Gaudêncio
  • Rui Gaudêncio
  • Rui Gaudêncio
  • Rui Gaudêncio

Um século depois, ainda se aprende com Abel Pereira da Fonseca

Por Alexandra Prado Coelho

Era um visionário, o homem que criou uma rede de distribuição em Lisboa com as lojas Val do Rio e um império de produção de vinho, licores e destilados. A herança de Abel Pereira da Fonseca continua viva no Bombarral.

Diogo convida-nos a passar para a parte de trás da loja da Companhia Agrícola do Sanguinhal e, em cima de uma grande mesa de madeira, abre o velho livro. Os rótulos colados na primeira página são de 1932 — a data aparece, escrita à mão, com a letra elegante que se usava na época.

E a partir daí é toda uma história que se desenrola à nossa frente, a história de uma empresa que cresceu, que foi fazendo diversos vinhos e bebidas licorosas, que se expandiu e exportou para o mundo, tudo a partir daqui, no Bombarral e desta Quinta das Cerejeiras onde nos encontramos.

Por trás da história da Companhia Agrícola do Sanguinhal esteve um visionário cujo nome é, provavelmente, ainda hoje mais conhecido que o da própria empresa: Abel Pereira da Fonseca, bisavô de Diogo Fonseca Reis, que agora nos recebe e nos mostra o livro antigo no qual durante mais de duas décadas Abel organizou todos os rótulos e etiquetas da casa, com anotações avisando “ficou combinado usar este”, ou indicando qual tinha sido rejeitado.

Abel Pereira da Fonseca era um homem muito organizado, conta Diogo, que não o chegou a conhecer mas ouviu muitas histórias sobre ele, entre as quais as da “avó Mimi”, Maria Emília Fernandes Pereira da Fonseca, que casou com um dos cinco filhos de Abel, Joaquim, o único que se dedicou ao negócio dos vinhos.

Vamos encontrar a avó Mimi, hoje já com 90 anos, na Quinta do Sanguinhal — que, juntamente com a das Cerejeiras e a de São Francisco forma o património da família no Bombarral. Esteve a pintar os seus quadros, como faz habitualmente, e desceu agora até ao jardim, porque o dia está excepcionalmente bonito. Convida-nos a sentarmo-nos à sombra para recordarmos esse homem “muito bom” que foi o seu sogro.

“Casei em 1940. Quando vim para aqui, o vinho era feito da forma tradicional. Os homens arregaçavam as calças até acima e pisavam a uva”, conta. O sogro, Abel Pereira da Fonseca, era “uma pessoa muito fora de série” e “muito metódico”. Recorda-se de o ver chegar à sua casa logo pelas oito da manhã “para ver o miúdo pequenino [o filho mais velho de Mimi] a comer a papa”. De manhã dava sempre a volta pelas quintas, “começava lá em baixo nas Cerejeiras e acabava aqui”.

No pátio de entrada da Quinta do Sanguinhal vê-se uma fotografia que mostra como era antigamente, os carros de bois a entrarem por ali dentro, carregados de caixas com uvas, que eram despejadas no pátio, pesadas numa balança e encaminhadas para a sala dos lagares, mais à frente.

Passamos por lá depois, para ver os impressionantes braços de madeira maciça das cinco prensas de vara e fuso (a mais antiga é de 1871) e imaginar o que era este cenário em pleno funcionamento, com as uvas a serem descarregadas pelas janelas para dentro dos tanques e as prensas a serem movidas por animais que andavam à volta, até o gigantesco braço se elevar do chão, trazendo com ele a pesada pedra pendurada na ponta, para acabar de espremer o engaço. 

Noutra sala vemos os alambiques usados para os destilados. “O meu bisavô tinha sempre a trabalhar com ele pessoas especializadas em diferentes áreas”, conta Diogo. “Ele trazia as ideias e ia buscar os que mais sabiam sobre cada assunto. Foram esses técnicos que ajudaram a montar aqui uma destilaria industrial, das primeiras a serem construídas em Portugal, com um processo de destilação contínuo a vapor. De um lado destilava-se o vinho, do outro, o bagaço.”

Voltamos às recordações que a avó Mimi tem de Abel Pereira da Fonseca. “Era uma pessoa generosa, tinha a carteira sempre aberta para os outros”, diz. Apesar de ter nascido nas Beiras, instalou-se no Bombarral e tornou-se de tal forma um filho da terra que chegou a ser presidente da Câmara. A nora recorda ainda que “era muito católico” e que “quando houve protestos e incendiaram a igreja do Bombarral, ele pôs a capela da Quinta das Cerejeiras à disposição da população.”

Esta foi sempre uma região produtora de vinho e, vários séculos antes, estas terras tinham pertencido aos monges de Cister de Alcobaça, que tinham vinhas. No início do século XX, Abel veio avaliar propriedades e decidiu comprar as três quintas na Região Demarcada de Óbidos.

“O que o interessou no Sanguinhal foi o potencial industrial que a quinta tinha”, sublinha Diogo. Além disso, a localização era — e continua a ser — muito boa. “Temos a serra do Montejunto, que protege esta zona do calor, o que dá vinhos com muita frescura. Nunca temos aqui mais de 32º ou 33º graus.”

A sua produção trouxe inovações: plantou as primeiras vinhas extremes (sem árvores de fruto misturadas), alinhadas e aramadas, e dividiu-as em talhões divididos por castas, o que não era habitual na época.

Mas Abel Pereira da Fonseca não era apenas mais um produtor de vinho. A sua carreira de empresário começara com a distribuição e para isso tinha fundado, em Lisboa, em 1906, a rede de lojas Val do Rio, uma espécie de precursora das actuais cadeias de supermercados. Um folheto de preços publicado em 1948 traz um resumo da história destes estabelecimentos: “O papel dos estabelecimentos Val do Rio, da Sociedade Comercial Abel Pereira da Fonseca, no abastecimento da capital, tem sido intenso desde o princípio deste século. Funcionando como armazéns reguladores e estabilizadores de preços, conquistaram rapidamente a sua clientela entre as boas donas de casa que procuram na qualidade e barateza, sem rival, dos produtos que vendem, a certeza de empregar bem o seu dinheiro.”

O texto sublinha ainda o papel das lojas Val do Rio no “abastecimento público de produtos de primeira necessidade” nos “períodos anormais criados pelas guerras de 1914 e 1939”. E refere que estes estabelecimentos, perto de uma centena, situam-se “tanto no aristocrático Chiado como na viela mais humilde de Alfama”. E neles, em instalações mais higiénicas do que as tradicionais tabernas, vendia-se vinho ao balcão e vários outros produtos.

“Vinho sem rival”

O edifício mais emblemático do império Abel Pereira da Fonseca, em Lisboa, situava-se (e situa-se ainda) em Marvila, junto ao rio Tejo. Trata-se de um projecto de 1917 do arquitecto Norte Júnior e ficava perto do rio por razões óbvias: era por barco que as pipas de vinho produzidos nas propriedades do Bombarral e as várias bebidas licorosas produzidas pela empresa deixavam a capital para serem exportadas para países como o Brasil, os Estados Unidos, a Suécia e enviadas para as excolónias portuguesas em África — daí o símbolo da Abel Pereira da Fonseca ser um barco. A este junta-se outro meio de transporte que foi essencial para a empresa: o comboio. Era a linha do Oeste que permitia trazer até Lisboa o vinho produzido nas quintas do Bombarral.

Voltemos ao livro dos rótulos para perceber a dimensão do que se produzia e as tendências da época. Há o Catete, “vinho licoroso do sul”, com um rótulo de inspiração tropical, há o Missa, “vinho preparado segundo as leis canónicas”; o “vinho tónico Toureiro”, “poderoso reconstituinte à base de carne”, que protege “a saúde do indígena”; há o Clarete “reserva especial do Café Gelo; outro “reserva especial para os lanches da Nacional”; e o Menagem, “o vinho preferido pelos aristocratas”; e, curiosamente, um vinho regional algarvio, o Risca de Seda.

Há modernas estratégias de marketing com promoções: “Examine interiormente a rolha deste garrafão pois poderá encontrar meia libra em ouro.” E há a frase publicitária, que se repete frequentemente: “Sanguinhal, vinho sem rival”. Em 1928, a Abel Pereira da Fonseca edita um livro contando a história da empresa e mostrando a sua já vasta estrutura. Nas fotografias vêem-se os enormes armazéns com centenas de pipas de vinho e os empregados na secção de engarrafamento, pondo rolhas e transportando garrafas em carrinhos de madeira.

Regressamos à quinta de onde tínhamos partido, a das Cerejeiras, mas antes despedimo-nos da avó Mimi no seu jardim na Quinta do Sanguinhal, prometendo voltar para a inauguração da sua exposição de pintura. Diogo ainda nos quer mostrar, nas Cerejeiras, a casa do bisavô, também projecto do arquitecto Norte Júnior e, por trás, quase escondida no meio do jardim, a capela da Madre de Deus, do século XVI e com azulejos do século XVII.

Hoje a Companhia Agrícola do Sanguinhal está nas mãos dos netos e bisnetos de Abel Pereira da Fonseca. Muito mudou, porque os tempos são outros e a modernização é obrigatória, mas o essencial não mudou: nas três quintas do Bombarral continua a fazer-se vinho. Os carros de bois já não vêm descarregar as uvas ao pátio da Quinta do Sanguinhal, porque desde a década de 1970 que a família centralizou a produção na adega da Quinta de São Francisco, que tem capacidade para vinificar um milhão de litros.

Diogo confessa que sempre que entra nos escritórios da empresa na Quinta das Cerejeiras procura imaginar como seria há 100 anos. Não será preciso um esforço de imaginação demasiado grande para vermos Abel Pereira da Fonseca, impecável com o seu chapéu, fato completo e relógio de bolso, a chegar ao escritório vindo da ronda das três quintas e da visita matinal ao neto bebé, a debruçar-se sobre um gráfico de exportações (talvez aquele, do final dos anos 1940, que Diogo encontrou há uns tempos) para, satisfeito, pensar para si mesmo: “Isto não está a correr nada mal.”

 

Fernando Pessoa, “o Abel” e o Paraíso Terrestre

A dedicatória ficou famosa. Fernando Pessoa escreveu-a para Carlos Queirós, sobrinho de Ofélia, nas costas de uma fotografia que o mostra ao balcão de um dos estabelecimentos da Abel Pereira da Fonseca a beber um copo de vinho: “Carlos, isto sou eu no Abel, já próximo do Paraíso Terrestre, aliás perdido.”

Foi em homenagem a Pessoa e ao seu entusiasmo pelo “Abel” que a Companhia Agrícola do Sanguinhal criou o vinho Casabel, um dos que hoje compõem o seu portefólio, feito com o enólogo Miguel Móteo. Este divide-se pela produção das três quintas. Na do Sanguinhal, em cujos solos argilo-arenosos estão plantadas castas brancas e tintas, faz-se o Quinta do Sanguinhal DOC Óbidos, o Sôttal (mais leve) e os varietais Sanguinhal.

Na Quinta das Cerejeiras, onde existem pomares de pera Rocha, produz-se o Quinta das Cerejeiras Reserva DOC Óbidos, e da Quinta de São Francisco, de solo franco-argiloso, sai o Quinta de São Francisco DOC Óbidos.

Desde há muitos anos que a família proprietária da Companhia Agrícola do Sanguinhal decidiu também dedicar-se ao enoturismo e abrir as portas da histórica Quinta do Sanguinhal, onde os visitantes entram num espaço que continua vivo e habitado numa visita sempre acompanhada por um dos membros da família.

Aí é possível visitar os jardins do século XIX, as vinhas, a antiga destilaria, o lagar com prensas de vara, a cave de envelhecimento com 36 tonéis e ainda fazer uma prova de vários vinhos. Há também a opção de visita com refeição.

 

Contactos

Quinta do Sanguinhal
Tel.: 262 609 190/914 493 231
Email: enoturismo@vinhos-sanguinhal.pt

Loja na Quinta das Cerejeiras
Bombarral
Tel:  262 609 190
Email: info@vinhos-sanguinhal.pt
Horário: De segunda a sexta-feia, das 10h às 13h e das 14h às 18h; sábados e feriados das 10h às 18h.

--%>