Fugas - Vinhos

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O que têm de único os vinhos da serra de São Mamede?

Por Alexandra Prado Coelho

Este é um Alentejo diferente, longe das planícies e do calor. Na região de Portalegre e na serra de São Mamede escondem-se vinhas velhas, algumas com perto de 100 anos. Uma visita guiada por cinco dos seus actores.

Rui Reguinga

Estamos no meio da serra de São Mamede e o enólogo Rui Reguinga pára o carro e sai. Aponta para um sinal na estrada: “Está a ver aquele sinal de neve? Pode parecer que não, mas já nevou aqui.” Uma das suas vinhas está à nossa frente, mas no meio da vegetação da serra é difícil perceber exactamente onde. “Repare nesta mistura de cores, é espectacular. Ali temos esteva, urze, carqueja. Noutras partes temos castanheiros, cerejeiras. Aqui é tudo diferente do Alentejo.”

A verdade é que estamos no Alentejo, mas no Alto Alentejo, junto a Portalegre, e mais precisamente na serra de São Mamede, a uns 900 metros de altitude. Muito longe das planícies que sempre associamos à paisagem alentejana. Não admira que os vinhos que se fazem nesta zona sejam muito diferentes dos da maior parte do Alentejo. E foi precisamente isso que atraiu o ribatejano Rui Reguinga, que aqui faz os seus Terrenus.
“A minha primeira vindima foi na Tapada do Chaves, em 1991”, conta. Nessa altura trabalhava como consultor para João Portugal Ramos e até então não conhecia a região de Portalegre”. Percebeu então que, numa época que era ainda de grande actividade da Adega Cooperativa, fazia-se vinho a partir de vinhas velhas que resistiam na zona, “vinhas com 80, 90, algumas com 100 anos já nessa altura”.

Muitos dos sócios da cooperativa tinham vinhas na serra, em altitude, e Rui começou a somar os factores diferenciadores da região: um microclima com maior frescura, altitude, vinhas velhas, uvas portuguesas. “Comecei a comparar os vinhos daqui com outros que na altura fazia noutras regiões e percebi que a diferença era grande.” Os daqui são “mais frescos, com menos álcool, mais potencial de guarda [capacidade para envelhecerem em garrafa]; os brancos são mais minerais pela presença de granito nos solos”.

A certa altura decidiu que queria ter ali um projecto próprio de vinhos. “Fui dos primeiros desta nova vaga a chegar à serra. Vim à procura do que faz a diferença.” Em 2004 fez o seu primeiro vinho da região, usando apenas vinhas velhas. Hoje tem quatro vinhas próprias na serra de São Mamede. “Numa delas tenho 18 castas diferentes, oito ou nove brancas, dez tintas, todas portuguesas”.
Mais tarde desafiou um amigo britânico, Richard Mason (que conhece bem Portugal, apesar de não viver no país), a ter outro projecto em Portalegre e nasceu o Sonho Lusitano, feito a partir das vinhas que rodeiam a adega de Rui e Richard.
Rui quer mostrar a diferença do terroir mas assume os seus vinhos como alentejanos. “O Alentejo é uma região geograficamente muito grande. Talvez os vinhos daqui sejam os mais diferenciadores, mas o que é interessante é mostrar que no Alentejo existem terroirs diferentes. Acho que cada vez mais vai-se fazer vinhos distintos, de microclima, de terroir. Na costa alentejana, por exemplo, já se fazem vinhos diferentes dos do resto do Alentejo”.

No Douro há muito que existe essa percepção, mas “no Alentejo os vinhos eram ainda vistos muito como ‘vinho do Alentejo’”, afirma. Quando começou este trabalho, havia pouca gente fora da região de Portalegre atenta ao seu potencial. A pouco e pouco, as coisas foram mudando. “Primeiro despertei a curiosidade dos especialistas, jornalistas, chefs, sommeliers, e agora estas ideias estão a chegar aos consumidores, que já começam a ter a percepção de que há diferentes zonas no Alentejo.”

Mas, ao longo destes anos, também Rui Reguinga foi aprendendo. “No início, fiz um erro de avaliação”, confessa. “Achei que havia aqui um grande potencial para tintos mas não para brancos. Não reconhecia que as uvas brancas eram boas. Estava totalmente enganado. Em 2008 fiz o primeiro branco, e hoje acho que talvez o potencial dos brancos da serra seja ainda maior que o dos tintos.”

Foi aprofundando cada vez mais o seu trabalho. “Em 2013 comecei a fazer vinhos por parcela e a partir daí estou a apurar cada vez mais: uma vinha um vinho.” Passamos pela vinha mais velha de Rui – “provavelmente mais de 100 anos” – rodeada por muros de xisto (noutro lado da serra os muros são de granito).
Continuamos pelas estradas da serra, em direcção à vinha mais alta que o enólogo tem – e, sem dúvida, uma das mais altas de Portugal, a 770 metros de altitude – da qual é feito o Terrenus Vinha da Serra. “É uma vinha em patamares, como no Douro. As 18 castas estão aqui todas misturadas: aqui Aragonez, ali Arinto, Roupeiro, alguma Bical. Toda esta vinha faz um field blend [o lote do vinho final é feito na vinha, não na adega como é comum]”

E também ela conta uma história, tal como a vinha da Ammaia, mais abaixo, junto das ruínas da cidade romana de Ammaia – o Terrenus Vinha da Ammaia, lançado em 2015, é a primeira experiência do enólogo de vinho de talha, feito em ânforas de barro. Cada uma destas vinhas, acredita Rui, merece estar na sua própria garrafa porque tem uma história única para contar.

 

João Afonso

“Estou em contracorrente”, diz João Afonso. “Quando todo o mercado faz adegas de milhão para vinho de tostão, eu estou a fazer o contrário. Claro que a primeira parte, a adega de tostão, é a mais fácil.” Estamos sentados na pequena adega da sua casa, em Cabeças do Reguengo, Portalegre, onde tem também a vinha e um turismo rural.
João Afonso, que foi bailarino antes de se dedicar de corpo e alma à produção de vinho (é também jornalista e crítico de vinhos), instalou aqui, dentro da própria adega, um minibar e, enquanto ouvimos jazz, conversamos sobre o que faz a diferença dos vinhos de Portalegre.
“Quero recuperar o antigo, mas sem qualquer saudosismo”, explica. Chegou à região em 2009 através do amigo, enólogo e também produtor Rui Reguinga, que já por aqui andava a fazer vinhos há uns anos. “Vim para levar varas [plantas de vinha] de vinha velha para Castelo Branco. A minha ideia sempre foi recuperar os genes das vinhas antigas, feitos por selecção natural e humana”.

Não lhe interessam os processos modernos, em que tudo “é laboratorial, muito clonado”. Mas quando chegou começou a perceber que não fazia sentido levar a vinha para outro lugar, que o lógico seria continuar a cultivá-la aqui. “Estas videiras estão aqui há décadas, eventualmente há séculos, completamente adaptadas a este clima.”
Comprou a propriedade onde agora nos encontramos, recuperou a casa antiga, que estava em mau estado, e praticamente a única coisa que manteve inalterada foram as duas cubas de cimento para as quais estamos a olhar. “São de 1952, o que significa que são anteriores à Adega Cooperativa, que é de 55. Há uma terceira cuba que é de 1977. Sai dali um vinho espectacular.” Precisamente por isso, usa “o mínimo de madeira possível”.

Esta é uma região com grande tradição de produção de vinho, mas sobretudo para consumo local. “Na altura, o vinho não viajava como hoje. Havia aqui muitas mini-adegas com ânforas de barro e havia excursões de malta que vinha de bicicleta para provar o vinho ainda antes de ele estar totalmente fermentado.”
Não lhe perguntem por uvas. Isso não lhe interessa. “Para mim não há uvas boas nem más. Há fenótipos, terroirs, climas.” E, acima de tudo, há diversidade. Indigna-o o “afunilamento das uvas” que se fez nos anos 80 e acredita que das vinhas velhas se faz “um vinho bem mais diverso, autêntico, especial.”

Divide os seus vinhos em “marcas dos astros”, com o Solstício (tinto, vinha velha) e o Equinócio (branco, vinha velha) e “marcas da vida”, com o Respiro, que é feito com uva comprada de diversas proveniências, sendo que o espumante é da Beira. “No Respiro faço o que me apetece, com as uvas que quero”, resume. Com uvas do Alentejo faz “um tinto de Verão, com pouco álcool, mas agora prepara-se para fazer exactamente o oposto: um branco com estrutura de tinto e com taninos. “Inverto os conceitos”.
Mas o mais importante, para João Afonso, é mesmo a “recuperação de memórias, de patrimónios”. “São muito importantes para a cultura do gosto”, diz. “É preciso mostrar os valores clássicos”.

 

Susana Esteban
 
Chamou “Procura” ao seu vinho da serra de Portalegre porque foi preciso procurá-lo. Susana, espanhola nascida em Tui, mas com experiência de fazer vinhos no Douro e no Alentejo, queria criar vinhos mais frescos. A procura acabou em 2011, quando chegou à serra de Portalegre e viu as vinhas situadas a 700 metros de altitude. Tal como tinha acontecido anos antes com Rui Reguinga, também foi esta a região que a enóloga escolheu para lançar o seu projecto em nome próprio.

“São vinhas velhas, que pertencem a pessoas com uma certa idade, que as usavam para fazer vinho próprio”, conta. Agora, Susana compra as uvas a estes proprietários e faz o Procura tinto a partir de duas parcelas completamente diferentes: a das uvas da vinha velha da serra, uma mistura de variedades, que lhe dá “uma frescura e complexidade pouco habitual”, e o Alicante Bouschet, que vai buscar perto de Évora, a uma zona de solos xistosos, e que “é muito importante para dar estrutura ao vinho”.
Dois anos depois, encontrou também em Portalegre a vinha velha, “única e excepcional”, a partir da qual faz o “Procura” branco. O lagar é em Mora, mas para Susana o que importa realmente é que as uvas sejam da serra e transportem esse terroir nelas.
“Há uma tendência, que é mundial, para fazer vinhos mais frescos”, explica. “No Alentejo muitos produtores grandes estão a plantar na zona da serra ou então perto do mar.” Portalegre é, nesse aspecto, “excepcional”. “Provados às cegas, ninguém diria que estes são vinhos do Alentejo”.

 

Vítor Claro

Foi também a paixão por uma vinha velha em Portalegre que levou Vítor Claro a tomar uma decisão difícil no final de 2016: fechar o seu restaurante Claro, deixar a cozinha (pelo menos por uns tempos) e dedicar-se inteiramente ao vinho, num projecto com a mulher, Rita.
É, para já, apenas um hectare e meio de vinha alugada, que, tanto quanto o casal apurou, foi no passado uma das vinhas modelo da Adega Cooperativa. Há muito que Vítor Claro se interessa por vinhos (notava-se isso, aliás, no entusiasmo com que formou a garrafeira no seu restaurante) mas continua a considerar-se um principiante, que vai ouvindo os conselhos de um amigo experiente, neste caso um dos mais experientes do país, Dirk Niepoort.

Também Vítor e Rita, tal como João Afonso, querem fazer “vinhos à antiga”, preservando o mais possível o carácter da vinha. Têm, para já, dois tintos e um branco: o Dominó Salão Frio, feito com uvas desta vinha, sendo 15% delas brancas; o Foxtrot, outro tinto com uma pequena percentagem de uvas brancas e, por último, o Dominó Branco, feito com uvas da propriedade de um vizinho e amigo.

Vítor gosta de os descrever como “vinhos de agricultor” por serem leves, frescos e com baixa percentagem de álcool, como os que os agricultores levavam para o trabalho no campo. Têm um perfil bastante diferente de muito do que se faz habitualmente em Portugal – são “mais medievais, com tudo o que a vinha tem”.

 

Os Symington

São os mais recentes recém-chegados à região de Portalegre e da serra de São Mamede. Ou melhor, ainda não chegaram exactamente. No início de Abril foi anunciado que o grupo empresarial da família Symington tinha investido num projecto fora da região do Douro (onde são um nome de destaque no mundo do vinho do Porto e dos vinhos do Douro), com a compra da Quinta da Queijeirinha.

Não estamos a falar de um projecto pequeno: são 207 hectares, 43 dos quais ocupados por vinha, onde se produz a marca Altas Quintas, que agora será completamente reformulada. A quinta situa-se a uma altitude entre os 490 e os 550 metros e tem uvas tradicionais, mais tintas do que brancas.
“Depois de 135 anos no Douro, a família entendeu que era o momento indicado para produzir vinho noutra grande região vinícola de Portugal”, disse na altura Rupert Symington.

Os vizinhos mais antigos na serra consideram que esta é uma óptima notícia. Rui Reguinga e João Afonso acreditam que a vinda vai trazer mais dinamismo para a região e despertar maior interesse pelos vinhos de Portalegre. Para Susana Esteban, “o facto de os Symington virem é a confirmação de que esta é uma grande região; eles estão há mais de um século no Douro, podiam ter ido para qualquer sítio do mundo e escolheram Portalegre”.

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