Fugas - Vinhos

  • Paulo Pimenta

O adorável planeta dos enochatos

Por Pedro Garcias

A cultura do vinho é mesmo fascinante. Tão fascinante que, quando começamos a achar que já sabemos alguma coisa sobre ela, nos tornamos maçadores. Sim, sim, todos temos um “enochato” dentro de nós.

O enochatismo não é uma doença que mate. É mais ou menos como o lambebotismo. Não é agradável, causa até algum desconforto, mas não deixa grandes sequelas. Em boa verdade, o enochatismo é mais benigno do que o lambebotismo, embora tenham em comum o facto de serem doenças típicas das classes médias e alta - vá lá saber-se porquê.

Há enochatos um pouco por todo lado: frequentam os mesmos restaurantes que nós, vão às mesmas festas e alguns até passeiam pelas nossas casas. Mas a doença é mais visível nas redes sociais, nos muitos blogues, fóruns e páginas do Facebook ligados ao vinho. Ninguém está imune. Nisso, o enochatismo é democrático.

O diagnóstico é fácil de fazer, nem precisa de exames. A doença manifesta-se quando, por exemplo, alguém fala de vinhos da mesma forma que o treinador do Sporting, Jorge Jesus, fala de Blaise Pascal (“o coração tem razões que a própria razão desconhece”, lembram-se?); quando, a propósito da mais sã das bebidas, alguém experimenta o ridículo e o delírio, sem chegar a ter convulsões, vislumbrando no vinho o cheiro ao célebre armário da avó ou convocando montanhas e vales, métricas e binários para o descrever; quando um indivíduo aparentemente saudável não consegue parar de postar no Facebook todas as boas garrafas que bebe; quando a pessoa mais cartesiana dá consigo a rodar o copo de água para volatizar os seus aromas... Enfim, os sintomas são inúmeros e nem todos se devem à ansiedade, a eterna causa de todos os males. Mas é, pode dizer-se, uma doença dos tempos modernos, como o stress ou a neurose obsessiva-compulsiva.

O acesso a bens que antes estavam só ao alcance de uns poucos – e o vinho continua a ser catalogado como um bem de luxo -, a competição social e a Internet tornaram-nos consumidores desenfreados e em especialistas de tudo e alguma coisa. O enochatismo é apenas uma das facetas da “geração curiosa”, como os cientistas sociais chamam à actual geração.

Por isso, no fundo, no fundo, todos somos um pouco enochatos. Quem ler esta edição do FUGAS vai encontrar inúmeras evidências da doença. Este texto, aproveito para me penitenciar, é, aliás, exemplar. Quem nunca foi infectado que atire a primeira pedra!
O enochatismo contagia? Um pouco, mas nunca ao ponto de colocar ninguém de quarentena. Tem cura? Claro. Essa é a boa notícia. Normalmente passa com o tempo, como as borbulhas. Quando o tempo (e a vergonha, já agora) não resolve o problema, aí, sim, podemos estar perante um caso grave, sobretudo para quem convive mais de perto com o enochato. Mas, infelizmente, para situações destas, a ciência ainda não descobriu um remédio.

Glossário do Enochatismo
(a partir de muitos casos reais)

Apressado
Perante um vinho velho, ainda em grande forma, mas com um aroma não muito limpo (normal em garrafas antigas acabadas de abrir, daí ser tão importante passar o vinho a limpo, para arejar e separar os sedimentos):”Este já foi bom. Passo”. Cinco minutos depois: “Eh pá, o vinho está a abrir...”. O enochato podia gozar mais a vida se fosse menos apressadinho.

Blogosfera
Um enochato passa muito tempo a alimentar o seu blog ou a página de grupo dedicada aos vinhos. Tem muitos amigos, mas convive muito pouco com a família. Há já quem se refira à comunidade dos blogs e afins como a nova filoxera, a peste do século XXI. Não é caso para tanto. Na verdade, só lê quem quer. Os nomes são sugestivos: “Pingas no copo”, “Copo de 3”, “os Vinhos”, “Pingus Vinicus”. São aos magotes e geridos por enófilos militantes (também há um blog com este nome), homens e (menos) mulheres que parecem viver em garrafeiras e adegas, sempre a “postar” provas e fotos de vinhos. Todos têm o seu quê de enochatos, mas alguns até são fofinhos. Fora da rede, normalmente, andam em bando.

Crítica (profissional mas de pormenor)
A propósito de um Verdelho do Pico (licoroso) -  “Âmbar translúcido. Ostras, um nada metálico, notas de mar, alguma cremosidade, citrinos discretos, especiarias, boa delicadeza e complexidade. Cremoso na boca, muita complexidade, cheio de nuances tostadas, com caril, sementes de coentros, acidez viva, boa rugosidade herbácea, final longo, muito seco, cintilante, focado”.

Crítica (profissional mas de erudição)
A propósito de um Bairrada: “Um branco sóbrio e sereno, senhor de uma individualidade marcada e de um carácter afiado. A boca apresenta-se quase épica, larga de horizontes, desafogada e quase mastigável, gigante na dimensão…mas simultaneamente equilibrada e serena, sem fogos-de-artifício inconsequentes, sem acessórios desnecessários. É um branco sério e sem artifícios barrocos, rigoroso e de compasso tranquilo, puro e cristalino, capaz de envelhecer em garrafa durante mais de duas décadas”.  

Decanter
Na casa do enochato há sempre um decanter com curvas e contra-curvas. Passa tudo por lá: um Porto Tawny com 40 anos, um Bairrada de 1960 e um Monte Velho de 2016.

Facebook
Se pudéssemos comparar o enochatismo à lepra, o Facebook seria o seu sanatório. Os enochatos adoram socializar em rede. Em certos fóruns, fazem inveja às reuniões dos narcóticos anónimos. Dizem-nos onde comem, o que bebem, o que gostariam de beber. “Postam” comentários e fotografias, partilham tesourinhos bons e deprimentes, não têm segredos para ninguém. São um livro aberto.

Esperteza (saloia)
Jantar de grandes vinhos do mundo, incluindo alguns portugueses. A lista mete champanhes, brancos e tintos de altíssimo nível. A meio do jantar, um dos convidados, enólogo, claro (são quase sempre enólogos os que fazem estes “números”), saca de uma garrafa sem rótulo, de um vinho novo, e, furando o protocolo, começa a dar a provar, com ar de quem apresenta uma coisa diferente e excepcional. Os restantes convidados agitam-se e vão chegando os copos à frente. “Também quero!”, suplica alguém. Outros, já depois de provarem, perguntam: “O que é isto? De onde é?”. O enólogo faz-se importante, ri-se, convencido de que surpreendeu toda a gente. Cria suspense, adensa a curiosidade, até que, já com ar sério, revela que é um tinto de uma vinha velha, de uma aldeia dos altos do Douro, etc e tal.  Pois.....

Garrafas
Alguém coloca no Facebook uma foto de uma garrafa, acabada de abrir, de Frei João Branco 1966, das Caves São João, Bairrada. Sucedem-se os comentários. Um publica uma foto de outra garrafa das Caves São João, o Poço do Lobo Arinto 1995. Logo de seguida, outro amigo acrescenta uma foto do Poço do Lobo Branco 1991. O primeiro responde: “Também tenho”. “E estas de 92?”, pergunta o segundo. “E 79?”, contrapõe o primeiro. “Mas não há Poço do Lobo Arinto de 79!”, chama a atenção o segundo. “Pois não, é o Porta de Cavaleiros”, responde o primeiro. E a conversa continua por aí fora. Outro amigo entra na liça: “Este para mim continua a ser o melhor”, sentencia com uma foto do Porta dos Cavaleiros 1984. “Mas o Arinto de 95, que ainda tenho algumas garrafas, também está muto bom”, aduz o segundo. “Nada disso, os brancos desta casa dão 10 a zero aos tintos. Esquece lá isso”, proclama o primeiro. “Não coloquei nenhum tinto....”, esclarece o primeiro. Desfeito o engano, continua o desfile de outros amigos com garrafas ainda mais velhas, até que alguém interrompe: “Conseguem estragar um post todo só para mostrar quem tem a “zurrapa” mais velha em casa... Porque não abrem um post chamado ´vaidades` e debitam lá tudo?”. O segundo não gosta e responde-lhe de forma azeda, iniciando uma nova ronda de comentários, desta vez só de piropos mútuos. Pior do que um enochato são dois ou três enochatos juntos.

Humor
O enochato é uma pessoa de humores. Quando está com iniciados, fala muito e de cátedra; quando está com quem sabe, fica macambúzio e apático.

Idade
É um rosé, bastante bom, mas apenas um rosé, um vinho leve, fresco e directo. Pergunta o enochato: “Que idade tem a vinha?”.

Jogos
Por vezes, o enochato é mesmo cruel. Gosta de joguinhos, tipo provas às cegas, para obrigar os amigos a adivinhar o vinho, fazendo-os passar as maiores vergonhas. “Vejam lá se sabem o que é isto?”, desafiam com evidente prazer sádico. Se o convidado é um enólogo ou um produtor, é certo e sabido que um dos vinhos foi feito pelo próprio, para este se estatelar ao comprido. É a isto que se chama “ter mau vinho”

Matemática
Já aflorada na entrada “Garrafas”. Dois grandes vinhos em comparação. Diz o enochato, decantando-se por um deles: “Este vinho dá 20 a zero a esse”.

Naturalista
O enochato naturalista: “O seu vinho tem sulfitos? Usa leveduras industriais? Que tipo de vinificação faz? Faz só em inox ou também utiliza barrica? E as barricas são novas ou usadas? E a viticultura, é orgânica ou biodinâmica?”

Prova
No restaurante, o empregado serve um pouco de vinho à pessoa  que o escolheu, normalmente o enochato. Este pega no copo, olha bem para o vinho, roda o copo com vigor, leva-o ao nariz, volta a rodar o copo, volta a cheirar, volta a rodar, mete um pouco de vinho na boca, fá-lo passar pela língua, pelo céu-da-boca, faz um gargarejo, bebe um gole e diz: “Pode servir”.

Rolha
O vinho é servido, vários convidados provam, surgem os primeiros elogios e, de repente, há alguém que sentencia: “Tem rolha (cheiro ou gosto a rolha provocado por uma substância química chamada 2,4,6- Tricloroanisole, vulgarmente designada por TCA). Todos voltam a provar novamente o vinho, o dono da casa sente-se embaraçado, o silêncio instala-se e começam os cochichos: “Não noto nada…”. Ninguém nota, por mais voltas que dê ao copo. “Rolha é favor!”, insiste o “especialista”, impante e seguro de que todos estão errados.  O dono da casa nem discute e abre uma segunda garrafa. “Esta sim, está boa”, assegura, de peito cheio, o homem de nariz sensível. Ok, não se discute mais.

Tropicalismo
Consumidores brasileiros em feiras de vinho (sem generalizar, claro, que os brasileiros são uns queridos). Se for mulher: “Amei seu vinho, viu!. Uma delícia. Parabéns. Vou comprar”. Se for um homem: “Este vinho é fo…, cara! Está do car…..! Put… que o par…! Disto eu quero”.

Umbiguista
O produtor enochato que só consegue provar, e dar a provar, os seus próprios vinhos

Verão
Petiscada no jardim, muito calor, toda a gente de calções, ambiente de festa, muita cerveja, alguns vinhos brancos e rosés leves e fáceis, copos banais. Chega o enochato com o seu kit de copos Riedel e uma garrafa de um tinto topo de gama. “Já conhecem isto?”, dispara.

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