Juliana Kelman é uma cidadã luso-brasileira. É também uma das 66 produtoras de vinho que participou no evento Vinhos de Portugal, realizado este ano pela quarta vez no Rio de Janeiro e pela primeira vez em São Paulo, com organização do PÚBLICO e dos jornais Globo e Valor Económico. Kelman é carioca e, desde 2013, é uma produtora dos vinhos do Dão, estando a fazer colheitas com a casta Encruzado em produções reduzidas de três mil ou cinco mil garrafas.
“Não foi uma aventura. Foi tudo muito pensado, foi um investimento e agora é um projecto de vida”, explica. “Foi quando no Brasil estava tudo a correr bem em termos económicos. Tive amigos que investiram em Miami. Eu preferi aproximar-me da minha família e encontrar um sítio para investir em Portugal”, conta.
Agora tudo mudou, o Brasil está mergulhado em crise e Portugal atravessa um melhor momento. Fomos encontrar Juliana em São Paulo, a fazer uma prova dos seus três vinhos a Vitor Brigido, um italiano que se mudou para o Brasil há oito anos e meio e que abriu uma empresa de importação em Curitiba, e da qual constam, praticamente, apenas vinhos italianos. “Esses eu já conheço, e agora quero abrir o catálogo para os vinhos de Portugal. E essa casta Encruzado está a ser uma boa surpresa”, admite.
Uns em busca de surpresa, outros à procura de confirmação, outros, ainda, com o objectivo de concretizar os melhores negócios. Mas uma coisa é certa: o vinho português desperta muito interesse nos brasileiros. E o potencial que tem o mercado brasileiro para os vinhos portugueses é enorme. Na altura em que ficaram conhecidas as estatísticas das importações brasileiras, e que mostraram que a quota de mercado conquistada por Portugal, no primeiro trimestre deste ano, o colocou no lugar de segundo país a exportar mais vinhos para o Brasil, a realização do evento Vinhos de Portugal foi considerada um sucesso.
Organizada pelo quarto ano consecutivo no Rio de janeiro, onde já tem uma presença consolidada e tem vindo a atrair um número crescente de clientes, foi este ano alargada pela primeira vez a São Paulo, sem dúvida o mercado mais importante no Brasil (é lá que se compra cerca de 80% do vinho importado em todo o Brasil). As expectativas eram grandes, mas saíram superadas.
Jorge Lucki, um crítico de vinhos paulistano que conhece bem a oferta portuguesa, sabia que no evento de São Paulo estava garantido tudo o que interessa para que terminasse num sucesso: “O vinho transcende o que está dentro da garrafa. Ele tem uma história, um local, uma origem, uma forma de ser elaborado. Está tudo isso dentro de uma garrafa, mas para isso é preciso haver alguém a contar essa história. Aqui temos o produtor a contar como decidiu fazer o vinho. E isso faz toda a diferença.”
Muitas formas de conhecer o vinho
Domingos Alves de Sousa, por exemplo, não se cansou de contar por que é que chamou Abandonado a um dos seus vinhos, ou Pessoal a outro. O primeiro, um tinto elaborado a partir de uma vinha que estava sem produção há dezenas de anos; o outro, por ter sido uma aposta pessoal de esperar oito anos antes de lançar uma colheita de branco feita à moda antiga. “É preciso um produtor ter coragem para esperar oito anos com uma colheita destas, enfiada numa garrafa às escuras. Estamos a beber um vinho de 2008 que foi lançado no mercado em 2016”, explica Dirceu Vianna Júnior, natural do Paraná (Brasil) e residente em Londres, e, por enquanto, o único Master of Wine que fala português, numa das muitas aulas especiais e provas orientadas que organizou em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Houve, pois, muitas maneiras de conhecer as histórias dos Vinhos de Portugal. Ou pela boca dos 66 produtores (alguns só puderam fazer-se representar, pelos seus importadores e distribuidores), ora durante a vintena de provas organizadas em cada uma das cidades, e dirigidas por críticos de vinhos (Manuel Carvalho, do PÚBLICO, Luís Lopes, Jorge Lucki e Dirceu Vianna Júnior), ora durante as 25 sessões de “Tomar um copo”, mais informais e de acesso gratuito, precisamente para conquistar mais público aos vinhos nacionais. Falou-se de vinhos da talha, das duas cores da Touriga Nacional, dos brancos, dos tintos, do Porto, do Alentejo, de Setúbal, do Dão. Falou-se de harmonização com comidas e doces (Alexandra Prado Coelho, jornalista do PÚBLICO), de aplicações para telemóvel para apaixonados pelo vinho (fê-lo André Ribeirinho, fundador da equipa da Adegga, uma das empresas responsáveis pela produção do evento, e que também desenvolve e comercializa esse tipo de aplicações, como a WineSpot), falou-se de cartoons (Luís Afonso, o autor do Bartoon, no PÚBLICO, foi a São Paulo contar as histórias dos cartoons que desenhou para as comemorações dos 260 anos da Região Demarcada do Douro), falou-se de Camões e de poesia (Adriana Calcanhotto, embaixadora da Universidade de Coimbra, convidou um dos maiores especialistas em Camões, e director da Biblioteca Geral de Coimbra, José Bernardes, a falar do autor d’ Os Lusíadas aos paulistanos).
“Querem saber tudo”
Apesar de replicarem os formatos, os eventos no Rio de Janeiro e de São Paulo foram, inevitavelmente, diferentes. No Rio de Janeiro decorreu no CasaShopping, um centro comercial na Barra da Tijuca, especializado em decoração. Em São Paulo, no J.K Iguatemi, um centro comercial cujo carácter aspiracional “jogou claramente a favor de um posicionamento distintivo dos nossos vinhos”, conclui Jorge Monteiro, presidente da ViniPortugal, a associação interprofissional do sector que é responsável pela promoção da marca Wines of Portugal.
No Rio de Janeiro o número de presentes tem sido crescente, e andou perto dos cinco mil visitantes; em São Paulo, foram quase três mil. Foram, mesmo assim, números que para a ViniPortugal confirmam o elevado potencial deste mercado para os vinhos de Portugal. “Embora menos que na primeira edição do Rio, é preciso notar que São Paulo é uma metrópole mais cosmopolita, menos lusófona, mas é o maior mercado regional do Brasil. São Paulo representa cerca de 32% do PIB brasileiro e 33% das importações de vinho, enquanto o Rio representa cerca de 11,5% do PIB e cerca de 10% do consumo de vinho importado”, contabiliza Jorge Monteiro, presidente da ViniPortugal, que organiza estes eventos em parceria com o PÚBLICO e com os jornais brasileiros Globo e Valor Econômico.
Na perspectiva dos produtores que estiveram em São Paulo, as características dos visitantes eram muito interessantes, pessoas com “conhecimentos sobre o vinho e interessadas em provar e conhecer”. Lígia Coelho dos Santos, dos Caminhos Cruzados, uma produtora do Dão, estava entusiasmada com o nível das perguntas e com o grau de conhecimento que encontrou — “não conhecem as castas todas, mas isso também em Portugal nem toda a gente conhece. Mas já não se limitam a pedir o branco ou o tinto, perguntam pela casta e querem saber a região”, relata. Luís Pato, uma referência no mercado de São Paulo, já sabia ao que vinha: “Querem saber tudo, até dos processos químicos.”
André Ribeirinho, responsável da Adegga, a empresa que montou a operação logística e a coordenação do evento, referiu que viajaram 500 garrafas em cada cidade só para as provas especiais e para as sessões de “Tomar um copo”. Para o Mercado de Vinhos viajaram outras 2500 garrafas para cada uma das cidades. Alguns produtores já têm importadores estabelecidos a trabalhar com eles, outros procuravam a oportunidade de encontrar alguns. No final do evento, Vitor Brígido saiu com “bastantes contactos” e ainda com maior vontade de incluir vinhos portugueses na sua lista. Adolar Léo Hermann, dono de uma importante garrafeira de São Paulo, a Decanter, e importador de alguns produtores nacionais, como Domingos Alves de Sousa, há já quase vinte anos, explica por que é que no mercado paulista os vinhos italianos têm tanto sucesso. “Vem de arrasto com a restauração. Quase 60% dos restaurantes em São Paulo são italianos. E nesses é difícil entrar vinho português. Era bom que tivesse um evento para as comidas como tem esse para as bebidas, que houvesse mais restauração portuguesa. Porque o brasileiro gosta do que é português”, insiste.
Roderlei Magalhaes confirma. Saiu de Curitiba para São Paulo há oito meses, e está a tentar tirar tudo quanto é curso de vinho, já visitou adegas na Argentina e no Chile. A próxima viagem está marcada para Portugal. Ele a mulher, Catia Macohim, têm viagem marcada para Portugal ainda este ano, onde tencionam passar vários meses para visitar adegas e quintas. A intenção é vender tudo no Brasil e mudarem-se para cá.
Esta reportagem termina como começou, com o genuíno interesse dos brasileiros no vinho português, que vai para além do consumo e entra nas questões de investimento. Definitivamente, o mercado do Brasil é chão que dá uvas em Portugal.