Culturalmente, devemos essa dádiva a Cristo, embora o catolicismo defenda o sofrimento e a autoflagelação como meios para chegar ao banquete celeste. O vinho é sangue, não poção mágica que alegra. Pelo contrário, poetas e filósofos como o persa Omar Kahyyam, também um reputado matemático e geómetra no seu tempo (séculos XI XII), propõem uma outra via: perante os mistérios da morte e da vida e da brevidade desta, o melhor é gozar o momento e buscar o prazer como atenuante da nossa angústia existencial — e o vinho é o melhor remédio. “Uma vez que ignoras o que te reserva o dia de amanhã/, procura ser feliz, hoje./ Toma uma ânfora de vinho, senta-te ao luar e bebe/, lembrando-te que, talvez amanhã, a lua te procurará em vão”.
A verdade pode não estar no vinho, mas o vinho pode ajudar-nos a esquecer a verdade. E, aqui, qualquer vinho serve. Só que um bom vinho, ao contrário do mau, não induz apenas esquecimento, também é um meio de sublimação espiritual. Sobretudo se for bebido com saber.
E chegamos onde queríamos: às provas cegas. Todos nós adoramos provas cegas. Tapar uma garrafa e pedir aos amigos que adivinhem o que está no copo, esperando que digam as maiores barbaridades, é uma das maldades-prazeres que mais entusiasmam a turba do vinho. O desafio pode ser divertido, em especial quando acertamos ou não dizemos grandes asneiras. Mas também pode ser uma tortura. Quantas vezes não somos confrontados com vinhos a que estamos ligados e sobre os quais dizemos as piores coisas? Quantos enólogos, em provas mais formais, não pontuam da pior maneira os seus próprios vinhos?
Num concurso, não há forma mais democrática de avaliar vinhos do que prová-los às cegas. É, digamos, a menos má de todas. Claro que nem sempre ganham os melhores vinhos. Mas, num ambiente informal, não há maior desperdício do que fazer de cada refeição com amigos uma prova cega, do que transformar momentos de convívio e de celebração da vida em exercícios académicos ou de exacerbação narcisista. Sobretudo quando em causa estão grandes vinhos.
Às cegas, só analisamos um líquido. Sem outros dados de avaliação, cingimo-nos às sensações primárias e respondemos de acordo com o nosso gosto pessoal e com o estado momentâneo da nossa boca e do nosso nariz. Numa prova cega, com uma frequência maior do que se imagina, damos connosco a enaltecer um vinho que, a descoberto, dispensaríamos ou a falar com pouco entusiasmo de um vinho caro, raro e que adoramos. Como podemos avaliar correctamente um vinho e desfrutar ao máximo dele se não soubermos como é feito e de onde vem? O conhecimento da história e da origem do vinho, das castas que o compõem, do tipo de solo em que crescem as videiras, do clima e do modo de vinificar é um dado fundamental no momento da prova. Um champanhe de Ambonnay é diferente de um champanhe de Le Mesnil-Sur-Oger, um tinto da casta Baga de solo calcário é diferente de um tinto da mesma casta proveniente de um solo de xisto. Conjugar o aroma e o gosto do vinho com o conhecimento do seu terroir é a forma mais segura e certeira de avaliar. Os franceses chamam a este tipo de prova “degustação geo-sensorial”.
É verdade que esse conhecimento prévio pode influenciar-nos, mas também é verdade que nos pode ajudar a entender melhor o vinho, a chegar ao seu âmago e aos detalhes que o distinguem. Além do mais, o que ganhamos em beber um Barca Velha, um Romanné-Conti ou um tinto velho da Bairrada às cegas? Como dizia um respeitado enólogo nacional, provar um grande vinho às cegas é o mesmo que dormir com a Claudia Schiffer de luz apagada, sem ver a sua cara e o seu corpo. Ou, para não sermos machistas, uma mulher passar uma noite às escuras com o George Clooney. Pode ser bom, mas podia ser ainda melhor.