No Douro, apesar do boom dos vinhos tranquilos e do vinho do Porto, o rendimento da maioria dos viticultores é cada vez mais baixo. Devido ao excesso de oferta existente, as uvas são pagas a valores demasiado baixos, mais baixos até do que noutras regiões com menores custos de produção.
Com as uvas tão baratas, o negócio é, sobretudo, favorável a empresas que apostam cada vez mais nos vinhos DOC Douro e que compram grandes quantidades de uvas a terceiros, como é o caso da Sogrape, por exemplo.
Em surdina, a maior empresa de vinhos do país é, aliás, acusada por alguns dos seus principais concorrentes, como a Fladgate Partnership (dona da Taylor’s, entre outras empresas) ou os Symington, de “bloquear” as reformas necessárias, para não perder essa vantagem. Mas a acusação soa a desculpa de mau pagador. Em bom rigor, o negócio corre bem a todos os grandes players do Douro, até mesmo aos que só se dedicam ao vinho do Porto. Claro que a Sogrape, até pelo seu peso, tem uma responsabilidade moral acrescida, mas não é a Sogrape que determina a política vitivínicola da região. A empresa está no negócio do vinho para ganhar dinheiro. Se puder comprar por cinco não vai comprar por dez. É assim que fazem a Sogevinus, a Gran Cruz, os Symington ou a Fladgate.
Por isso, não faz muito sentido diabolizar apenas a Sogrape. Aliás, se há uma virtude que ninguém pode negar à empresa dominada pela família Guedes é a sua ética negocial. Agressividade empresarial é uma coisa, ética é outra — e, ao longo da sua história no vinho, os Guedes sempre deram mostras de actuar de forma irrepreensível, de respeitar os outros e de cumprir o que assumem.
São inúmeros os casos que evidenciam esse “saber estar” e que mostram que por trás da capa de negociadores duros se escondem pessoas com sensibilidade e “humanidade”. Poucos sabem, mas Manuel Guedes, tido como o mais playboy dos netos do fundador, responsável, entre outras coisas, pelo Clube 1500, faz voluntariado hospitalar. Foi ele que literalmente, e de uma forma tocante, “tomou conta” do irmão, Salvador Guedes, quando este começou a sofrer os primeiros efeitos da Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), em 2012.
O drama de Salvador Guedes é, de resto, o maior exemplo da “fibra” dos Guedes. Na verdade, esta crónica é sobre ele. A esperança de vida de um doente de ELA é muito curta. Cinco anos, na melhor das hipóteses. Salvador Guedes já sobreviveu a esses cinco anos. Perdeu toda a mobilidade, vive dependente de máquinas e de um fisioterateupa e fiel escudeiro filipino, mas nunca perdeu a lucidez. Comunica através do olhar e de uma máquina que traduz o seu olhar/pensamento em frases. Apesar de, em 2015, ter passado a presidência ao irmão, Fernando Guedes, mantém o seu escritório, continua a ir todos os dias à empresa, participa das decisões estratégicas do grupo e até interfere na escolha de nomes e de rótulos para novos vinhos.
É emocionante esta ligação de Salvador Guedes à empresa e à vida. Ao mesmo tempo que foi preparando a Sogrape para os novos desafios, fez também do seu drama pessoal um exemplo de luta e de preocupação com quem sofre da mesma doença. Criou o movimento Todos Contra ELA e tem-se envolvido directamente, com o apoio de outros familiares, na realização de jantares, leilões e outras iniciativas com o objectivo de angariar fundos para que outros doentes, com menos recursos económicos, possam aceder a melhores tratamentos e ter uma maior esperança e qualidade de vida. O seu contributo foi, aliás, decisivo, para a abertura de uma delegação da APELA, Associação Portuguesa de Escleroso Lateral Amiotrófica, no Hospital Conde Ferreira, no Porto.
O seu legado será enorme. Desde logo pela forma visionária como soube expandir a Sogrape e aproveitar as oportunidades de negócio, algumas em contraciclo económico, como foi o caso da compra das Bodegas Lan, na Rioja, hoje uma das mais bem sucedidas operações do grupo. Ou como preparou a sucessão, deixando a empresa praticamente sem dívidas e com uma estrutura executiva mais sólida. Mas também pela perseverança e dignidade que tem demonstrado na sua luta contra a ELA e na sensibilização da sociedade para esta doença. É nos momentos mais difíceis que os grandes homens se revelam.