Fugas - Vinhos

Nelson Garrido

A vindima e os vinhos de antigamente

Por Pedro Garcias (crónica)

E pronto, já começou a vindima, o momento em que se colhe um ano de trabalho e de sonhos e o novo vinho começa a nascer.

São uns dias ou semanas muito duros. Dorme-se pouco e trabalha-se muito, com pausas curtas apenas para matar a sede e a fome. Começa-se de manhã cedo na vinha e acaba-se muitas vezes já de madrugada, a tratar dos mostos e das fermentações na adega.

Mesmo assim, no imaginário de todos nós, a vindima continua a ser uma festa, com muita música e umas grandes almoçaradas. Claro que isso é, sobretudo, verdade para uns quantos, para os que passam pelas vinhas e pelos lagares como turistas ou convidados. Para quem trabalha a sério, como os vindimadores ou os adegueiros, o melhor momento é mesmo quando se corta o primeiro e o último cacho — e se faz o almoço final. O resto do tempo é uma prova de esforço contínua, uma luta contra a fadiga acumulada e o calor.

Para o produtor, o melhor dia é mesmo quando tudo começa, quando se cortam os primeiros cachos. Um dia mais cedo ou um dia mais tarde pode fazer toda a diferença. Pode significar um grau de álcool a mais ou a menos, um pouco menos ou um pouco mais de acidez, um vinho equilibrado ou desequilibrado.

O último dia é sempre o mais triste, aquele em que se vivem sentimentos estranhos. Por um lado, de alívio, pelo cansaço; por outro, de nostalgia, por tudo terminar. As vindimas acabam e começam logo as saudades. É preciso esperar mais um ano para se voltar à mesma celebração de sempre e, pelo meio, repetir as mesmas rotinas e aflições: lavras, podas, tratamentos, o temor da geada, as chuvas fora de tempo, o míldio e o oídio, a falta de água, o calor em excesso….

Este ano, a vindima começou muito mais cedo. O tempo está mesmo a mudar. Quando era criança, no tempo em que as crianças também iam cortar uvas e despejar baldes, as vindimas em Alijó coincidiam sempre com o início das aulas, na primeira ou segunda semana de Outubro. Os mais necessitados, como era o meu caso, quase imploravam para poder ir uns dias à vindima e ganhar umas coroas. Literalmente, umas coroas naquele tempo. Era duro, mas não guardo nenhum trauma dessas vindimas primordiais. A não ser uma jornada no “Armindo Rico”, em que ao almoço só tive direito a meia sardinha, relembro esses dias de Outubro, às vezes frios e chuvosos, com saudade. Eram dias felizes e não sabíamos. De pobreza, mas felizes.

O que tinha menos graça era a nossa própria colheita. Coisa pequena, uma pipa apenas para consumo do meu pai e dos amigos. Uvas brancas e tintas misturadas. Cachos inteiros que pisávamos a contragosto, em especial nos primeiros dias, antes da fermentação arrancar. O mosto, de tão frio, enregelava as pernas. O vinho fazia-se de bica aberta, sem leveduras ou qualquer outro produto de origem industrial. Hoje, seria um vinho moderno. Depois de cheia, e quando ficava cheia, a pipa nunca mais era atestada. Todos os anos os vinhos ganhavam um véu de flor. Na entrevista que Raul Pérez deu à Fugas (ver edição de 5 de Agosto), o enólogo espanhol fala dos vinhos tintos com véu de flor que está a fazer na sua região, Bierzo. Eram esses vinhos que o meu pai e todos os produtores de Alijó e um pouco de todo o país faziam antigamente. Vinhos que com frequência avinagravam ou, na hipótese mais benigna, ganhavam um “piquinho”, sensação proporcionada por uma acidez volátil alta. Mas bebia-se tudo. Era vinho caseiro e, se era caseiro, era bom. Um mito rural, claro.

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