O melhor, tenho que confessar, era quando o padre anunciava: “Ide em paz e o Senhor vos acompanhe”. Também gostava daquele momento durante a consagração do pão e do vinho, o corpo e o sangue de Cristo, em que ecoava o som do pequeno sino (acho que se chama carrilhão) situado mesmo por baixo do altar. Às vezes pedia para ajudar o sacristão só para poder dar essas duas badaladas na fase mais solene da missa, quando o padre, estendendo as mãos sobre o pão e o vinho, diz “tomai todos…”, antes de fazer uma genuflexão perante Jesus.
O terceiro momento era o da comunhão. Naquele tempo (não sei se hoje ainda é assim), ensinavam-nos na catequese que não podíamos mastigar a hóstia. Depois de abrirmos a boca ao padre, tínhamos que desfazer a hóstia na língua, comprimindo-a contra o céu-da-boca, para que não tocasse nos dentes. Era embaraçoso, mais ou menos parecido como quando bebemos um gole de espumante novo de bolha pouco fina. O que fazia da comunhão um momento especial para mim não era bem aquela lâmina de trigo, era mais o mistério em torno do vinho que o padre bebia. O que seria? Seria mesmo vinho? E logo de manhã, sem comida? Se calhar era apenas água ou um refresco, algo líquido para empurrar a hóstia, cogitava eu, ainda longe de perceber que os padres, regra geral, sempre beberam do melhor – e, no Douro, o melhor era o vinho fino, o vinho do Porto.
Por norma, o vinho da missa costuma ser doce e com um bom volume de álcool, para não se estragar. Mas não tem que ser assim. Em algumas regiões do Brasil, por exemplo, é comum os padres comungarem com vinhos rosados, alguns até de uvas americanas. Na Europa, em países como a Itália, por exemplo, usa-se também vinho branco, embora o mais famoso seja o chamado Vinsanto, um vinho doce tradicional da Toscana e da Úmbria feito com as castas Trebbiano e Malvasia. Em Portugal, a tradição também privilegia os vinhos doces. Um dos produtores mais conhecidos é as Caves Primavera, da Bairrada, que faz um vinho de missa doce de uvas brancas para várias dioceses. É a estas, e não às comissões vitivinícolas, que cabe, em última instância, certificar a validade do vinho.
As regras estão inscritas no documento Redemptionis Sacramentum, onde se detalha o que se pode comer e beber durante a liturgia. “O pão tem que se ser ázimo, só unicamente de trigo. (…) Não pode constituir matéria válida, para a realização do Sacrifício e do Sacramento eucarístico, o pão elaborado com outras substâncias, embora sejam cereais, nem mesmo levando a mistura de uma substância diversa do trigo, em tal quantidade que, de acordo com a classificação comum, não se possa chamar pão de trigo”; o vinho “deve ser natural, do fruto da videira, puro e dentro da validade, sem mistura de substâncias estranhas. (...) Está totalmente proibido utilizar um vinho de quem se tem dúvida quanto ao seu carácter genuíno ou à sua procedência, pois a Igreja exige certeza sobre as condições necessárias para a validade dos sacramentos. Não se deve admitir sob nenhum pretexto outras bebidas de qualquer género, que não constituem uma matéria válida”.
Mas o que é um vinho natural? Pode levar sulfuroso, leveduras industriais, colas, etc? Que se saiba, a Igreja ainda não chegou a este detalhe, mas não deve faltar muito. Recentemente, o Cardeal Robert Sarah, Prefeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, dirigiu uma Carta aos bispos diocesanos pedindo-lhes que vigiem a qualidade do pão e do vinho destinados à Eucaristia e a idoneidade daqueles que os fabricam. O que levou Frei Bento Domingues a perguntar, numa humorada e interessantíssima crónica no PÚBLICO: “Jesus não gostava de broa?”.
A preocupação do cardeal com a qualidade do pão e do vinho usados na liturgia tem um motivo bem prosaico: “Enquanto até agora, de um modo geral, algumas comunidades religiosas dedicavam-se a preparar com cuidado o pão e o vinho para a celebração da Eucaristia, hoje estes vendem-se, também, em supermercados, lojas ou mesmo pela internet”. Daí que, “para que não fiquem dúvidas acerca da validade desta matéria eucarística”, sugira que os bispos passem a garantir a matéria eucarística “mediante a concessão de certificados”.
O problema é que algumas doenças modernas vieram baralhar tudo. E se o padre é intolerante ao glúten? Aqui, a Igreja faz algumas concessões mas não muitas. “As hóstias completamente sem glúten são matéria inválida para a Eucaristia. São matéria válida as hóstias parcialmente desprovidas de glúten, de modo que nelas esteja presente uma quantidade de glúten suficiente para obter a panificação, sem acréscimo de substâncias estranhas e sem recorrer a procedimentos tais que desnaturem o pão”. Quanto ao vinho, se o padre tiver algum problema de alcoolismo ou não poder beber por qualquer outro motivo, pode recorrer a sumo de uva.
Para Frei Bento Domingues, estas concessões significam pouco. O que o preocupa é a insistência numa teologia dos sacramentos e da liturgia conservadora. "Não se pode pensar como se ainda estivéssemos no mundo cultural da época de Jesus. Pensar dessa maneira é amputar o cristianismo da sua significação universal e da sua capacidade de inculturação em todos os povos e culturas. Quem, no seu perfeito juízo, pode hoje supor que, na chamada celebração da última Ceia, Jesus tenha dito: ´fazei isto em memória de mim, mas só com pão de trigo, ázimo, e a bebida só pode ser vinho`?”, questiona.
Tudo bem com o pão. Pode mudar. Mas deixem ficar o vinho, com ou sem sulfuroso. Uma missa regada a cerveja ou a uísque não ia ser a mesma coisa. E eu até nem vou à missa.