Fugas - vinhos

Fanatismo proibicionista

Por Rui Falcão

Estaremos nós reféns de um pequeno grupo de fanáticos extremistas, submergidos num registo de arrogância e falso moralismo que se prepara para condenar o vinho a uma existência quase clandestina?

Em que país do mundo poderia um jornal generalista ser processado, e posteriormente condenado em tribunal, por ter publicado um artigo notificando e comentando sobre o lançamento de três novos champanhes? Num qualquer país abstruso e reaccionário, em que a associação entre os hábitos culturais e a as crenças religiosas pudessem impedir ou condenar o consumo de álcool? Não, estranhamente o caso passou-se em França, no centro da Europa liberal e progressista, de costumes cultos e distendidos, no país que muitos ousam confundir com o vinho, pátria orgulhosa de muitos dos vinhos mais afamados do mundo.

O que conduziu a tal ditadura de costumes no país das centenas de denominações de origem? Esta história tomou lugar há pouco mais de cinco anos, em Dezembro de 2005, tendo como protagonista o semanário francês Le Parisien.

Assumindo as práticas habituais das edições natalícias dos jornais generalistas, o semanário publicou um artigo sobre os vinhos de Champagne, intitulado O triunfo do Champagne, discorrendo sobre os vinhos da região e elegendo três vinhos como embaixadores, exemplos esclarecedores sobre os vários estilos possíveis. Para espanto de toda a comunicação social francesa, e europeia, o Le Parisien foi processado por uma sociedade anti-álcool de contornos extremistas, a Association Nationale de Prévention en Alcoologie et Addictologie (ANPAA), sob o pretexto e fundamento de publicidade encapotada a bebidas alcoólicas, prática proibida de acordo com a lei francesa. O que nos conduz à hoje afamada lei Evin, vigente em França, de todos, os países logo em França, inibitória de toda e qualquer campanha publicitária sobre tabaco ou bebidas alcoólicas, impeditiva de toda a publicidade em televisão, de patrocínio a eventos desportivos ou culturais, e de uma séria limitação à liberdade na imprensa escrita. De todos os países do mundo, teria de ser em França, a pátria do vinho, que uma lei tão extremista e terrorista seria aprovada. O que equipara e coloca a humanizada França no mesmo patamar do Irão e Afeganistão, os outros dois países do mundo onde a discussão sobre o álcool é talqualmente banida.

O ministério da saúde francês chegou mesmo ao desplante de apontar que "o consumo de todas as bebidas alcoólicas, especialmente o vinho, é desencorajado pelo governo francês". Ainda hoje, ninguém conseguiu perceber a racionalidade da argumentação de "especialmente o vinho". E sim, infelizmente a história é real e passa-se mesmo em pleno século XXI, em França, no centro da Europa dos valores iluministas.

O fanatismo e a irracionalidade chegaram a tal ponto que o mesmo ministério chegou a comparar, e a elevar à mesma categoria de risco, o vinho com narcóticos como a heroína ou a cocaína. Segundo a lei Evin, instigadora de uma tentativa de demonizar o consumo de vinho, é proibido mostrar imagens de pessoas a beber. A paranóia persecutória chegou ao remate de, em 2008, a ANPAA processar o produtor de cerveja Heineken, por este manter um site Internet com endereço francês. Estranhamente, o argumento foi aceite como válido para a condenação pelo tribunal, caso o endereço francês não fosse eliminado e o acesso a partir de computadores de registo francês não fosse bloqueado.

Agora que a paisagem francesa se encontra protegida dessa terrível praga que tem atormentado a Europa durante séculos, o vinho, as autoridades europeias, movidas pelo mesmo tipo de extremismo, falso moralismo, ignorância e douta arrogância, estudam estender uma lei semelhante aos restantes países europeus, equiparando o vinho às drogas duras, rechaçando de um ápice séculos de história e civilização, escudando os pobres cidadãos europeus dos dramas e pecados do vinho. Poderá parecer ficção mas o sonho perpassa pela cabeça de muitos burocratas cinzentos, de missionários evangelistas e proselitistas em defesa dos nossos interesses, mesmo contra a vontade dos cidadãos, desejosos de equiparar os malefícios do vinho ao prejuízo do tabaco, incapazes de assimilar o desastre a que conduziram as leis proibicionistas do início do século passado nos Estados Unidos da América.

Por isso não se surpreenda quando descobrir nos anúncios de vinho de muitos produtores portugueses, e europeus, a indicação de que o vinho deve ser bebido com moderação, apontando para um consumo regrado, indicando o endereço do site www.wineinmoderation.eu para consulta. O programa redunda de uma associação formal entre muitos dos principais produtores europeus, numa tentativa esperançada de auto-regular o consumo de vinho, moderando a linguagem comercial e imprimindo uma mensagem de recato, passível de conseguir sensibilizar as autoridades europeias para o esforço dos produtores em reforçar as mensagens de alerta sobre o consumo de vinho.

Ou seja, num acto de contrição por oferecerem um dos valores máximos da civilização ocidental, o vinho, celebrado desde tempos imemoriais por toda a bacia do mediterrâneo, símbolo conceptual da religião maioritária na Europa, os produtores têm de se mostrar quase arrependidos por transformar as uvas em vinho, pedindo perdão pelos terríveis malefícios a que submetem os cidadãos europeus. Tudo porque um grupo de extremistas obstinados e caprichosos, decididos a salvar o mundo do pecado, elevaram o vinho a semente de todos os males do universo.

Tempos difíceis para a liberdade individual e intelectual!

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