Ouvimos a velha e estafada frase vezes sem conta, provinda da boca de tantas figuras, públicas e privadas, de enófilos mais apaixonados a consumidores mais ocasionais, de produtores a críticos profissionais, de enólogos a comerciais - os vinhos estão a ficar todos parecidos, ou mesmo iguais, consoante a observação se expresse de forma mais ponderada ou extremista. Vinhos produzidos num estilo comparativamente semelhante, aproximando de forma inapelável estilos, regiões e países num registo uniforme e apático, proporcionando vinhos que se descobrem previsíveis, monótonos e indiferentes.
Se durante séculos a grande divisão estilística entre os vinhos assentava no peso das regiões ou das castas, consoante a influência de uma matriz predominantemente europeia ou tendencialmente mais novo mundo, nas variedades, no clima, solos, inclinações, exposições e tradições, actualmente são as convicções, ou a falta delas, que comandam o vinho e que o separam em dois universos quase antagónicos, oferecendo duas filosofias incompatíveis, inerentes a cada um dos lados da contenda. Hoje o mundo dos vinhos demarca-se, sobretudo, pela presença, ou pela vacuidade, das convicções, pelo jugo do medo sobre a autenticidade e a originalidade.
Se em tempos o vinho foi sinónimo de empresa de espírito familiar, de compromisso pessoal, de herança passada entre gerações, de ligação e apego à terra, de entusiasmo e dedicação à causa, esse entendimento hoje reformou-se. À medida que as casas produtoras se foram metamorfoseando em sociedades por acções, em empresas cotadas na bolsa, em corporações compelidas a distribuir dividendos junto dos accionistas, a necessidade de jogar pelo seguro passou a ser imperiosa, compelindo à ascendência de vinhos seguros e previsíveis, capazes de agradar a uma fatia cada vez mais alargada de consumidores.
Acrescente-se a esta realidade a circunstância dos novos produtores de raiz urbana, homens de evidente sucesso material procedentes de diversas áreas profissionais, sem ligação objectiva à terra, atraídos ao fenómeno do vinho por capricho pessoal, moda, justificação social, satisfação própria ou sincera paixão... mas sem tempo, paciência, experiência e disponibilidade para acompanhar e influenciar o projecto, delegando as pequenas e grandes decisões em terceiros, abdicando do ónus de conduzir o projecto em favor de consultores e comerciais, renunciando a um cometimento íntimo, capaz de acrescentar dimensão e alma ao vinho.
Por isso, pela privação de empenho pessoal e alheamento de muitos novos produtores, e, no caso dos grandes produtores, pela necessidade imperiosa de jogar pelo seguro, os vinhos se assemelham tanto entre si, sem alma, sem chama, sem entusiasmo nem sobressalto. Vinhos sem convicção que se revelam invariavelmente previsíveis, condimentados pela presença manifesta da madeira, de forma mais perspicaz ou mais expansiva, amparados pela fruta explícita e por uma indisfarçável sensação de doçura final... capaz de dissimular tantas lacunas e insuficiências.
Porém, e ditosamente, nem tudo está perdido. Os vinhos de convicção, por natureza imprevisíveis e provocatórios, continuam a existir, capazes de desassossegar a alma e de alimentar discussões apaixonadas. São vinhos que contam histórias do terroir e das pessoas, vinhos de personalidade forte, espelho fel de quem os criou e do local onde nasceram. Em Portugal o espírito ainda transborda, com vinhos de carácter vincado espalhados por todas as regiões.
Vinhos como o Quinta de Foz de Arouce Vinhas Velhas de Santa Maria 2007, por ora ainda fechado a sete chaves, quase brutal na força dos taninos, austero como deveria sempre ser nesta fase da mocidade. Mas a fruta, essa, já marca presença segura, amparada por uma estrutura gigantesca e por uma acidez perfeita que lhe asseguram um futuro radioso. A casta Baga num registo imperial! Ou o alentejano Montefino Reserva 2005, do Monte da Penha, saudavelmente rústico, com uma delicadeza e autenticidade capazes de conquistar os corações mais empedernidos. Apesar do estilo desconcertante, é fácil gostar deste Montefino, perfeito para a mesa, incrivelmente fresco, genuinamente cativante. Não é um vinho para ganhar concursos, mas sim um tinto para a mesa, para a tertúlia, para o saudável convívio à roda da mesa.
O Quinta das Maias Jaen 2007, de uma das castas mais desvalorizadas do Dão, oferece aromas frescos de groselha, morango e cereja.
Porém, como é frequente nos vinhos da Quinta das Maias, é a boca que lhe empresta o verdadeiro carácter, uma boca fina e precisa, objectiva e pragmática, temperada por uma acidez generosa que o refresca até à medula, avivado pela fruta delicada, empolgado por uma rusticidade elegante que lhe acrescenta verdadeiro carácter.
Muito mais intenso e desmesurado mostra-se o Quinta de Macedos 2005, desenhado num estilo feroz e desmedido, quase quixotesco na valentia e vigor dos taninos explosivos do final de boca. Muito embora os conceitos de proporção e equilíbrio não façam parte do vocabulário próprio deste Quinta de Macedos, o resultado final é francamente delicioso, na pureza e autenticidade de um vinho que desafia a lógica.
Vinhos de convicções fortes, sem receio de serem diferentes, vinhos de desassossego e inquietação, de alvoroço e excitação. Vinhos que abonam alegria.