Fugas - vinhos

Paulo Ricca

A Ferreira continua em forma, 200 anos depois

Por Manuel Carvalho

No ano em que a A.A. Ferreira celebra os 200 anos do nascimento da sua protagonista maior, a Fugas quis saber o estado da velha empresa. E perceber como funciona este gigante que consegue balancear vinhos do Porto com tintos do Douro, marcas de gama média-baixa com estrelas como o Barca Velha. O tempo dá identidade às empresas e isso é evidente na Ferreira

Na sala de provas da Ferreira, em Vila Nova de Gaia, é difícil escolher o que olhar. A paisagem que sai de uma janela enorme mostra-nos uma das mais belas silhuetas do Porto setecentista, mas no interior da sala há balcões de mármore ou uma pia que chamam a atenção e, principalmente, centenas de garrafas de várias eras que nos dão um pequeno sinal do legado da velha A. A. Ferreira, a marca que invoca Antónia Adelaide Ferreira, cujo nascimento aconteceu faz 200 anos no dia 4 de Julho. Ali perto, numa garrafeira com mais de 12 mil rolhas encontram-se depositados os vintage que, desde 1815, atestam a ligação íntima da casa ao vinho do Porto. Num piso inferior ao da sala de provas, um vasto arquivo documental reúne e conserva milhares de papéis, letras de câmbio, instruções para feitores no Douro ou representantes comerciais em Londres, arrolamentos de vinhos, notícias de expedições ou plantas de vinhas em construção. Não há muitas empresas em Portugal ou no mundo com tanta memória como as do vinho do Porto, e neste particular a Ferreira é um caso excepcional.

Terá esta herança algum impacto na fisionomia da casa ou no estilo dos seus vinhos? Os seus líderes suspeitam que sim. O tempo define culturas que, apesar de não serem imunes à moda, permitem ao menos manter traços de identidade com alguma duração. A este propósito, se há uma marca que, nas gamas superiores, parece ter conservado um rumo imune às principais tendências é sem dúvida a Casa Ferreirinha. Há uns anos atrás, quando os vinhos tintos atingiam níveis máximos de extracção que lhes dá corpo e cor, quando os níveis de álcool subiam normalmente além dos 14%, quando a evidência da fruta viva e jovem se sobrepunha a tudo, a A. A. Ferreira manteve-se firme à sua escola e aos seus princípios. Claro que o Barca Velha de 2000 é um pouco menos austero do que as anteriores edições, é evidente que o Reserva Especial de 2003 recentemente lançado no mercado é um prodígio de modernidade quando comparado com os seus congéneres dos anos 90; mas a moda dos "vinhos estruturados e robustos" não alterou o perfil da Ferreirinha. "Os nossos vinhos têm de ter alguma estrutura, mas aliamo-la à harmonia e à elegância e vocação para a mesa. Durante alguns anos, podemos ter estado esquecidos dos prémios da imprensa, mas os consumidores não nos esqueceram", diz Luís Sottomayor, enólogo responsável da empresa.

O que é, afinal, a A. A. Ferreira por estes dias? "É principalmente uma empresa de vinho do Porto", responde Raul Ramos Pinto, responsável pelo departamento de marketing que trabalha na casa desde 1989. Todos os anos, a Ferreira, marca com que é comercializado o vinho do Porto, coloca no mercado quatro milhões de litros de vinhos de diferentes categorias; a Ferreirinha, designação para os vinhos tranquilos do Douro, aproximou-se dos dois milhões de litros anos anuais em 2009, embora três quartos deste total estejam associados à marca de combate da casa, o Esteva. Esta hegemonia da marca de acesso aos mercados deixa ainda assim margens para quantidades assinaláveis das gamas médias-altas ou até altas. Vale a pena recordar que a empresa produziu 26 mil garrafas de Barca Velha de 2000 ou 19 mil do Reserva Especial de 2003, uma quantidade que alguns concorrentes de menor dimensão gostariam de dispor para as suas marcas de gama média. E além destas funções, a integração da Ferreira na Sogrape, consumada em Dezembro de 1987, fez com que a empresa assumisse a gestão de todo o portefólio de marcas baseadas nos vinhos durienses. O que inclui além do Vila Régia e do Planalto (que vale 1,5 milhões de litros vendidos por ano), as diferentes gamas de vinho do Porto da Sandeman e da Offley Forrester.

Como se gere toda esta teia sem comprometer a identidade? Começando pela cúpula, "a Sogrape é uma empresa de marcas que se organiza por regiões", explica Joana Pais, responsável pelas relações com a imprensa do grupo. Assim, enquanto Manuel Vieira é responsável pela produção do Dão ou dos Vinhos Verdes, por exemplo, Luís Sottomayor é o responsável por tudo o que sai do Douro. Aqui, a Ferreira tem propriedades que somam 500 hectares de vinhedos e dois centros logísticos para articular todo o processo de vinificação da produção própria e das uvas compradas a centenas de produtores individuais. "Temos a flexibilidade total na gestão da matéria-prima", explica Luís Sottomayor, mas há algumas regras informais que se consolidaram com o tempo e a experiência. Sabe-se, por exemplo, que as produções da Quinta da Leda, no Douro Superior, são a base das gamas superiores da Casa Ferreirinha (Callabriga, Leda, Reserva Especial e Barca Velha), sabe-se que 75 por cento das uvas que vão para o Esteva são de fornecedores externos, sabe-se que os vinhos do Porto são principalmente criados na zona do Pinhão e vinificados na Quinta do Seixo, a pouca distância desta vila duriense.

Gerir esta parafernália de diferentes marcas com diferentes identidades, produzindo vinhos que vão dos quatro aos 50 (ou muito mais) euros por garrafa parece tarefa impossível para um homem só. Luís Sottomayor desdramatiza: "Tudo se faz em equipa e há sempre quem se identifique mais com um ou outro estilo de cada casa". No caso dos vintage, por exemplo, esse estilo é mais elegante e harmonioso nos Ferreira, mais feminino nos Sandeman, com mais estrutura e robustez nos Offley, precisa o enólogo. Nesta procura, é normal "descobrir depois dos lotes feitos que os vinhos têm a mesma proveniência de sempre, seja de lavradores ou das nossas quintas". A identidade parece, pois, consolidada.

Ainda que a Ferreira e a Ferreirinha representem apenas 15 por cento do volume de negócios do gigante Sogrape (cerca de 190 milhões de euros), as mais-valias do seu portefólio vão certamente além destes valores. Os Barca Velha são altamente apreciados em mercados como o de Angola e no Brasil e, obviamente, em Portugal -, ajudando a Ferreira a criar lastro para os seus outros produtos. Excluindo o Esteva, a Casa Ferreirinha exporta cerca de 30 por cento da sua produção, o que quer dizer que a força principal da marca, principalmente ao nível do vinho do Porto seja Portugal. Depois da aposta pioneira nos anos 50 no mercado interno, os Ferreira lideram em valor as vendas de Porto em Portugal. E os vinhos da sua casa irmã, a Ferreirinha, continuam a ser uma referência. Nas gamas de preço médio baixo, ou no mercado de topo. Quase 200 anos depois do nascimento da mulher que lançou as base da aventura Ferreira (ver texto ao lado), a identidade da casa, que não leva os seus responsáveis a preocupar-se em "maquilhar vinhos para ganhar concursos", como diz Luís Sottomayor, continua a merecer o aplauso da crítica.

Nos vinhos do Porto de gama alta, a Ferreira debate-se com o protagonismo das casas de inspiração inglesa e com um estilo mais acessível a consumidores inexperientes, mas mais suspeito para os amantes de vintage mais rodados. Os Ferreira têm um estilo mais macio, mais doce, mas nem por isso menos atraente. Também aqui a velha linhagem conta, como se pôde comprovar com uma extraordinária prova de Vintage de 1834, 1847 e 1853, que mais de um século depois continuam a mostrar uma enorme frescura e vitalidade. Mas é nos tawny, correntes ou com indicação de idade, que a Ferreira melhor mostra o enorme potencial dos seus lotes. O que, juntamente com uma das mais perenes campanhas publicitárias de sempre, justifica que a Ferreira permaneça como a marca líder em valor no mercado nacional.

Dois séculos depois de D. Antónia, a empresa está quase a passar a primeira geração sem a liderança dos seus descendentes. A integração na Sogrape retirou-lhe a aura romântica das empresas familiares, mas permitiu-lhe nervo financeiro e estratégia para manter os valores essenciais da sua marca para resistir no duro mercado dos vinhos. D. Antónia talvez não gostasse de ver nas mãos de outrém os bens que foi reunindo, mas ficaria certamente feliz por conhecer as quintas e os vinhos que continuam a ser criados sob a égide do seu legado.

Três vinhos para celebrar o bicentenário

Nunca é tarde para se declarar um Barca Velha, mas os amantes dos tintos clássicos da Ferreirinha não têm motivos para lamentar a ausência da grande marca da casa neste ano em que se celebra o bicentenário do nascimento do D. Antónia, a 4 de Julho. E não têm porque chegou há pouco ao mercado um Reserva Especial de 2003 que só não é Barca Velha por causa daquelas insondáveis decisões da equipa de enologia da Ferreira que, nestes casos, procuram apenas distinguir o excelente do... excelente. Porque pela sua profundidade, elegância e sofisticação de aromas e paladares que nos provoca, este tinto é por si só um dos grandes tintos da actualidade. E se não se chama Barca Velha, paciência. Custa à volta de 45 euros nas garrafeiras.

Numa outra dimensão, este ano exige também a convocação do Quinta da Leda de 2007 para as festividades. Na hierarquia dos grandes vinhos da Ferreirinha, o Leda surge no pódio para receber a medalha de bronze. O que é muito. E tratando-se de um tinto de 2007, a bitola eleva-se é talvez o Leda mais bem conseguido de sempre. Um tinto belíssimo, que custa aproximadamente 30 euros.

A Ferreira juntou-se por seu lado à comemoração com um Reserva Tawny de homenagem a D. Antónia (10 euros). Um Porto vigoroso na boca (a média do lote ronda os sete anos), bem balanceado e pronto a beber acompanhado de queijos, de frutos secos ou de um bom pão de ló.

A aventura da Ferreira
O que sobrou da herança de Dona Antónia

Portugal foi até há pouco um país fundamentalmente agrícola e na história deste Portugal agrícola nunca houve um personagem de D. Antónia Adelaide Ferreira. A saga da actual A. A. Ferreira teve o seu arranque por volta de 1751, mas será a neta do Ferreira primordial que vai transformar completamente o rumo do pequeno negócio e criar o maior império agrícola do seu tempo. Nascida em 5 de Junho de 1834, na Régua, D. Antónia Adelaide Ferreira casou-se com o seu primo direito, António Bernardo, e após a morte precoce deste teve a fortuna de herdar todo o património acumulado pelos dois ramos dos Ferreira da Régua desde 1750 até 1840. Mas seria a sua paixão pelas vinhas e pelo Douro, o enorme sentido de oportunidade comercial que a levou a acumular vinhos antes das grandes pragas das videiras do século XIX, o oídio e a filoxera, para depois os vender com largas mais-valias em períodos de carência, ou ainda a sua ética empresarial que a tornaram uma das pessoas mais ricas do Portugal de novecentos.

Quando morreu aos 84 anos, em 1896, D. Antónia deixou aos seus dois filhos e 18 netos uma fortuna colossal, avaliada em 5.907.323 mil réis. Neste acervo constavam 24 quintas (entre as quais o Vesúvio ou Vargellas) capazes de produzir 1500 pipas de vinho de alta qualidade por ano, 13 mil pipas armazenadas, "centenas de pipas de aguardente e uma preciosa frasqueira com milhares de garrafas das mais consagradas colheitas, como as de 1815, 1820, 1834 ou 1847", lê-se na biografia de D. Antónia escrita pelo historiador Gaspar Martins Pereira e Maria Luísa Olazabal. Apesar das dificuldades do século e da predação dos recursos familiares do seu primeiro marido, D. Antónia encontrou a fórmula das empresas de vinho do Porto do futuro, combinando a produção com a exportação, apostando em marcas próprias e num modelo global de gestão que articulava informação das quintas, dos armazéns e dos delegados comerciais nas principais praças europeias.

Após a sua morte, o património vinhateiro da família ficou reunido na Companhia Agrícola e Comercial dos Vinhos do Porto, formada em 1898 na qual os dois ramos de herdeiros, a casa de António Bernardo Ferreira III e a condessa da Azambuja dominavam o capital mas não dispunham da maioria dos votos. Os primeiros anos da nova empresa são orientados por Wenceslau de Lima, filho da alta burguesia portuense e amigo íntimo do rei D. Carlos que tinha casado com uma neta de D. Antónia. Até à saída de Francisco Olazabal da empresa já nos anos 90 para criar um projecto numa das quintas emblemáticas de D. Antónia, o Vale Meão, vários descendentes ou familiares colaterais da fundadora geriram a Ferreira. O investigador Henrique Gomes de Araújo condensou essas etapas de evolução projectando a acção de homens como Ramon de Olzabal (basco que casou com uma das filhas da condessa de Azambuja) ou de Jorge Viterbo Ferreira como essenciais num processo de "construção antropológica do sucessor". Numa obra publicada em 2001, o antropólogo nota a persistência de uma ética empresarial e de uma cultura na casa Ferreira que remonta ao património moral da principal fundadora.

Apesar de todas as vicissitudes, a Ferreira resiste às duras conjunturas do século XX e impõe-se como uma marca emblemática do sector. A sua aposta no mercado nacional depois de 1950 ("Foi você que pediu um Porto Ferreira...") consolidam a sua posição. Em 1952 é lançado o primeiro Barca Velha, que logo se torna a marca emblemática do vinho tinto português e confere ao seu criador, Fernando Nicolau de Almeida, uma aura de genialidade que inspirou as gerações de enólogos que se lhe seguiram. Nessa década são adquiridas a Constantino e a Hunt Roope, empresas com presença nas áreas dos brandy e dos Porto. Nos anos 60 a Ferreira inova ao acabar com todas as exportações de Porto a granel.

A alteração do padrão de negócios do sector determinada pela chegada das multinacionais e a multiplicação de herdeiros começa no entanto a tornar a Ferreira incapaz de manter a sua posição. "Quando se leva uma empresa a um certo grau de desenvolvimento, acontece muitas vezes que o grupo familiar já não tem possibilidade de o levar mais além. Não há dúvida de que me custou muito: eu sou a oitava geração aqui e a perda do carácter familiar era uma coisa que a mim não me agradava", contou Francisco Olazabal a Henrique Gomes de Araújo. No final dos anos 80 do século passado, a quinta do Vesúvio é vendida aos Symington e a Ferreira, juntamente com algumas das suas quintas, passa a integrar o grupo Sogrape, após intensas negociações que envolveram o Governo para evitar a sua venda a estrangeiros.

Francisco Olazabal permaneceu na administração da empresa durante mais alguns anos. Actualmente, a Ferreira não é uma empresa autónoma, apenas uma unidade de negócios no seio da Sogrape. Ainda assim, as suas marcas são fundamentais para a estratégia do grupo liderado pela família Guedes. Pelo valor que geram, mas talvez ainda mais por serem consideradas por parte da crítica e do mercado como próximas da excelência.

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