Fugas - vinhos

Carla Carvalho Tomás/Arquivo

A diferença como uma virtude

Por Rui Falcão

Por uma vez na vida, saia dos lugares comuns e atreva-se a provar vinhos diferentes, vinhos de castas raras, regiões esquecidas e produtores menos mediáticos. Quem sabe se não será agradavelmente surpreendido?
Dia após dia, semana após semana, ano após ano, tantos de nós acabamos por beber os mesmos vinhos, provavelmente das mesmas regiões, dos mesmos produtores, sem a chama e a ousadia de procurar por novas aventuras, sem o prazer de substanciar novas descobertas, sem o arrojo de explorar algo diferente. Se em tantos capítulos da vida assumimos o risco da novidade, quando chegamos ao vinho preferimos manter uma postura mais conservadora, mais clássica, resistindo às mudanças e às propostas mais arrojadas das faixas que se afastam da nossa zona de conforto.

Preferimos os nomes que nos são familiares, de produtores e denominações conhecidas, de castas e estilos populares, de enólogos e regiões notórias, hesitando e duvidando perante tudo aquilo que não soe a reconhecido e habitual. Defendemos as regiões, castas e produtores que conhecemos com teimosia, por vezes com os sentimentos assentes em bairrismos desproporcionados, sem que alguma vez nos sintamos verdadeiramente empenhado em conhecer outras regiões, outras castas, outros produtores. Fugimos do desconhecido forjando uma série de justificações aparentemente racionais para explicar a nossa relutância em provar vinhos que se apresentem diferentes do padrão tradicional.

E com isso perdemos aquela que é uma das grandes mais-valias do mundo do vinho, a imensa riqueza de carácter e diversidade de estilos, a sua complexidade, a variedade quase infinita de géneros e discursos. Sem ter sequer de sair de Portugal, por vezes mesmo sem ter de sair de uma região, podemos divagar por vinhos que representam estilos e filosofias que em tudo são distintas, procurando por vinhos originais e pouco rotineiros, vinhos como o Viúva Gomes Collares 2004, que, como o próprio nome indica, provém de Colares, uma das denominações mais singulares do mundo que continua a ser votada ao esquecimento dentro de Portugal.

Este, de 2004, apresenta-se vestido de cor vermelha granada com bordo já muito levemente acastanhado. Delicado e fino nos aromas, feminino e atraente na fruta elegante, seguro nos taninos e acerado na acidez, consegue conciliar uma rusticidade inequívoca com uma faceta um pouco mais elegante e harmoniosa, numa afinidade pouco habitual nos tintos de Colares.

Ainda mais radical, porque absolutamente desconforme com os padrões costumeiros dos vinhos brancos, surge o Viúva Gomes Collares branco 2008, onde as notas profundas de cera, mel, acácia, palha seca, pêssego e pó de talco poderão derrotar os menos familiarizados com os brancos de Colares, sobretudo quando encimados pelas notas salinas e iodadas do final de boca. É um branco alternativo e original, diferente dos restantes brancos do mundo... mas um branco delicioso nas notas de vinho velho e no leve travo de oxidação que apregoa. Um branco que deverá ser provado com um espírito bem aberto.

Sem chegar a sair de Lisboa é ainda tempo de fixar o Humus Reserva 2009, um tinto de nome pouco vulgar que exterioriza uma personalidade forte, exposta num estilo francamente original que entrelaça dois mundos que se encontram profundamente divididos entre nariz e boca. O estilo é discretamente atordoante, entrecruzando um nariz floral e perfumado altamente apelativo com uma boca muito mais masculina e dura, férrea nos taninos e tensa no final de boca. Um tinto bem engraçado que poderá vir a melhorar substancialmente em garrafa e que merece ser conhecido.

Surpreendente e revigorante, eventualmente difícil de encontrar no continente, o espanto proporcionado pelo Seiçal Latadas Reserva 2007, um tinto madeirense estreme da casta Touriga Nacional, só é suplantado quando se descobre como o vinho é diferente, viçoso, frutado e alegre. Adornado de cor vermelha rubi de concentração ténue, o nariz saltarica entre as notas florais primaveris e a fruta delicada, com muita framboesa e romãs, a que se juntam algumas notas bem evidentes de pó de talco. A boca anuncia um vinho frutado e alegre, delicado, viçoso na frescura e delgado no corpo, de final feliz, ainda que relativamente curto. Mais um tinto a provar de espírito aberto.

Clássico e intemporal, algo rústico mas pleno de temperamento, apresenta-se o Serra Mãe Reserva 2005, um Castelão estreme de Setúbal, da Sivipa, detentor de um encanto quase naïf que lhes assenta especialmente bem, num apelo campestre e charmoso que acaba por atenuar alguns dos defeitos e teimosias do vinho, onde predominam as notas de caça mortificada, terra húmida, tabaco e cereja preta, embaladas por um vinho de cunho tendencialmente rústico mas genuíno, de corpo mediano e final intenso. Apesar de inegavelmente demodé, o resultado final é feliz e merece ser conhecido.

Das Beiras emergem diversas surpresas agradáveis. Entre elas, o Raya 2008, um vinho do produtor Horta de Gonçalpares, um tinto de cor vermelho rubi cintilante. A frescura é a nota dominante deste tinto beirão, desde a fruta bem medida e sem sobrematuração até à acidez sensata que compõe o final de boca. É um tinto elegante e bem composto, harmonioso e delicado, original e melódico.

Um nome a reter na denominação. De cunho bem diferente, mas igualmente atraente, aponta-se o Gravato Touriga Nacional 2006, com as vinhas situadas a meio caminho entre o Douro e as Beiras, radicalmente diferente dos restantes Touriga Nacional do país, num estilo mais rústico, austero, quase duro... mas terrivelmente sedutor. Este, da colheita 2006, anuncia cor vermelha retinta com bordo violeta. Autêntico como poucos, revela uma rara beleza interior, apresentando-se generoso nas notas de terra húmida e barro. Um vinho como muitos outros deveriam ser, gastronómico e austero, amigo da mesa, tenso e mineral, pujante, rústico e irrequieto mas, felizmente, suficientemente urbano para terminar cortês, num fim de boca encantador.

Vinhos diferentes, de regiões raramente valorizadas, de produtores menos mediáticos, de castas nem sempre reconhecidas, de escassa exposição pública, mas que merecem uma oportunidade séria para serem provados com atenção. Afinal, a diversidade do vinho português é uma das grandes mais-valias do sector.

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