A porca, a rondar os 200 quilos, tinha acabado de ser morta no jardim exterior do restaurante O Lagar, em Escalhão, Figueira de Castelo de Rodrigo. Mesmo que o ritual nos acompanhe quase desde o berço, não há habituação cultural que nos prepare para o momento da matança. "As pessoas sensíveis/ não são capazes/De matar galinhas/Porém são capazes/De comer galinhas", escreveu Sophia de Mello Breyner Andressen. É o nosso caso. A coisa não é fácil de ver, pelo que deu jeito ter chegado atrasado a um programa que prometia muita carne de porco e algumas colheitas marcantes do tinto Quinta da Leda.
Na mesa da esplanada, havia já torradas com azeite e outros entreténs que Luís Sottomaior, o responsável pelos vinhos do Porto e de mesa do Douro da Sogrape, fez acompanhar com um novo e muito agradável Quinta da Leda rosado, feito só de Touriga Nacional (ainda não está no mercado). Enquanto uns bebiam e se dedicavam ao garimo (regionalismo usado na zona de Montesinho para designar o prazer de estar ao sol em dias frios), Pedro, o dono de O Lagar, e alguns ajudantes de ocasião tratavam de abrir o animal. Tina, a mulher, fazia o vaivém com a cozinha, levando as vísceras nobres (coisa estranha de se dizer!...) para serem cozinhadas na hora.
A cena lembrava os programas mais "hard" da série No Reservations, de Antony Bourdain, o chefe americano e estrela de televisão que já foi adito de muita coisa e que agora parece não conseguir viver sem carne de porco e seus derivados. Por pudor, é melhor pouparmos nos pormenores sobre o que se comeu. O que se bebeu foi uma magnum de Quinta da Leda 2000, ainda a viver uma primeira juventude, com boa acidez e grande estrutura tânica.
Haveríamos de voltar aos vinhos antes do jantar, um monumental e magnífico cozido que confirmou as boas impressões do almoço: n`O Lagar continua a comer-se muito bem, confortados pelo calor que imana das suas duas lareiras. Não foi uma prova vertical de Quinta da Leda, que o momento não era para isso. Mas provaram-se algumas colheitas que tornaram ainda mais interessante e proveitosa a visita do dia seguinte à grande propriedade duriense da Sogrape, 160 hectares de vinha (salpicados de oliveiras) espalhados pela margem esquerda do Douro, na freguesia de Almendra, Vila Nova de Foz Côa.
Na Quinta da Leda, berço também do Barca Velha e do Ferreirinha Reserva Especial, o assombro dos vinhedos esconde um grande trabalho de inovação vitivinícola. O tempo das práticas empíricas deu lugar a uma viticultura de precisão, onde cada parcela é trabalhada e gerida em função do tipo de solo (e os solos no Douro variam muito mais do que se imagina), das castas plantadas e do vinho que se pretende fazer. E, para completar o trabalho, há uma parte da adega só destinada para experiências e vinificações especiais. Os grandes vinhos dão muito trabalho a fazer.
O primeiro Quinta da Leda é de 1995, mas foi em 1997 que se deu a primeira grande mudança. Neste ano, a Sogrape começou a utilizar pela primeira vez outros tipos de madeira que não o carvalho português na fermentação e estágio dos vinhos da Casa Ferreira. Uma parte do vinho utilizado nos vários ensaios agradou tanto que foi engarrafada como Quinta da Leda (o terceiro vinho da hierarquia da Casa Ferreira, logo a seguir ao Barca Velha e ao Reserva Especial). O vinho tem agora 15 anos e continua em forma, embora não seja muito longo e mostre alguma rudeza.
Outra colheita marcante foi a de 2001. Nesse ano, o Quinta da Leda foi vinificado pela primeira vez na nova adega da propriedade. Antes, os vinhos da Casa Ferreira eram feitos na Quinta do Vale Meão. Bastante harmonioso e fresco, é um vinho cheio de sugestões campestres e especiadas e muito amplo na boca.
Está para durar, tal como o Quinta da Leda de 2004, um dos grandes anos da década passada. Ao contrário do vinho anterior, o que sobressai neste é a robustez e profundidade, o halo caloroso e a sua suculência gustativa. Parecido, só mesmo o Quinta da Leda 2009, que sairá brevemente para o mercado. É um vinho de grande impacto olfactivo, com muita fruta e notas mentoladas, e bastante encorpado e carnudo.
Mostra-se já muito atraente, mas não supera o extraordinário 2007, talvez um dos melhores vinhos Quinta da Leda de sempre. Foi a primeira vindima de Luís Sottomayor como responsável máximos pelos vinhos da Casa Ferreira (depois da saída de Soares Franco), e de António Braga, o segundo enólogo. As condições climáticas foram perfeitas para a geografia árida do Douro Superior, onde chove quase tão pouco como no deserto.
O vinho, feito também já com uvas da vizinha Quinta da Granja, que havia sido comprada à Gran Cruz, faz a síntese de quase todos os outros que se provaram: tem a potência, a robustez e o volume do 2004, a fruta e a expressividade do 2009, a frescura e a vivacidade tânica do 2001. Grandioso, não é tinto para um dia de matança de porco. Merece um momento, digamos, mais "civilizado", sem imagens e sons que nos recordem a condição de carnívoros primários.