Fugas - vinhos

Adriano Miranda

O conto do vigário de Rudy Kurniawan

Por Rui Falcão

Jovem, misterioso. Rudy Kurniawan tinha tudo para convencer todos das suas capacidades para os vinhos. E da sua riqueza. Conseguiu-o durante muitos anos. Até, recentemente, o FBI provar que não passava de uma fraude. Uma história de vinhos e documentos falsos, milhões e milhões de dólares e muita gente de orgulho ferido...

Pouco tardou até Rudy Kurniawan se transformar num dos nomes mais comentados no mundo do vinho ao longo das duas últimas décadas, apreciado e estimado por muitos, mas simultaneamente abominado e rejeitado por outros tantos, encarado como um patrono, conhecedor, polícia, moralizador, comerciante ou especulador, consoante as vozes de apoio ou de contestação às suas actividades.

Um personagem jovem e relativamente misterioso, como convém a quem tem de interpretar um papel. Nascido na China, Rudy Kurniawan emigrou e naturalizou-se cidadão indonésio, embora mantivesse residência nos Estados Unidos da América, na Califórnia, desde os finais da década de 1990, para onde se terá mudado com o intuito de concluir os estudos universitários. O que se revelou inquestionável e notório desde os primeiros momentos vividos na Califórnia foi a prosperidade financeira que nunca teve qualquer pudor em exibir de forma ostentatória, revelando uma fortuna aparentemente infinita e mais do que suficiente para os seus gastos extravagantes.

Embora ninguém saiba bem quando e como tudo começou, Rudy Kurniawan passou rapidamente a ser conhecido nos meios enófilos mais endinheirados pela roupa pouco convencional com que habitualmente se apresentava, bem como pelas despesas extravagantes em leilões de vinhos das grandes casas, sendo agraciado com lugares cativos na primeira fila de leiloeiras tão valorizadas como a Christie's, Sotheby's, Zachys ou Acker Merral & Condit. Ao fim de poucos meses, começou a circular o rumor de que Rudy Kurniawan teria sido abençoado com um nariz prodigioso, rapidamente ganhando a aura e prestígio de ser considerado um dos maiores especialistas de vinhos internacional.

Passou a comprar preciosidades e raridades vínicas com uma desenvoltura nunca vista nos mercados, denunciando uma capacidade financeira invejável a que poucos podiam aspirar. Em determinado momento da sua insaciável carreira de licitador, durante a primeira metade deste século, bastava a sua simples presença material nos leilões para fazer disparar para valores demenciais os preços dos vinhos em licitação. Diz-se nos mentideros do vinho que Rudy Kurniawan terá chegado a gastar mais de um milhão de dólares numa só semana, entretido entre leilões em Beverly Hills e Nova Iorque, numa roda-viva despesista em que o dinheiro parecia ser inesgotável.

Para muitos, Rudy Kurniawan terá sido precisamente um dos principais responsáveis pela súbita e incontrolável valorização dos vinhos finos e elitistas no mercado internacional, vinhos de origem maioritariamente bordalesa, californiana e de mais alguns raros pontos no mundo, valorização intempestiva que outros preferiram classificar como especulação. Estávamos no auge do delírio capitalista e bolsista que varreu o mundo ocidental, antes da implosão do sistema financeiro internacional, quando o dinheiro corria solto e sem moral e o amanhã parecia não existir. Como seria expectável, Rudy Kurniawan passou rapidamente de comprador insaciável a revendedor compulsivo e conselheiro de raridades, arrematando vinhos por cerca de 4000 dólares que rapidamente vendia a milionários ociosos por 10.000 dólares, com o atestado de autenticidade que o seu nome assegurava.

A sua colecção particular, dizia-se, estaria repleta de vinhos improváveis e históricos que conseguia descobrir com o seu faro apurado, acumulando mais de cinquenta mil garrafas de raridades e rótulos de prestígio incontestável. Começou a oferecer garantias pessoais e bancárias contra fraudes nos vinhos que vendia, assegurando a autenticidade de todos os rótulos que colocou em leilão, deixando correr o rumor de se ter transformado num dos especialistas mais respeitados contra a então ainda incipiente falsificação de rótulos de prestígio. Nem mesmo a revelação dos seus peculiares hábitos, entre os quais a reivindicação de serem guardadas e enviadas para sua casa todas as garrafas vazias de vinhos preciosos abertas em provas e leilões, afectavam a sua honorabilidade e prestígio.

Até que o esquema morreu de vez, ainda antes da derrocada estrondosa do sistema financeiro ocidental. O declínio começou em 2007, quando um lote de vinhos seus foi retirado à última hora de um leilão influente, sob suspeita de falsificação. Mas o golpe de misericórdia surgiu em 2008, quando a prestigiada leiloeira Acker Merral & Condit colocou em leilão um lote alargado de vinhos da sua cave particular, com raridades de Domaine Ponsot, Borgonha, com um preço inicial de licitação de 600.000 dólares. O escândalo rebentou quando Laurent Ponsot, quarta geração à frente da casa, surgiu em Nova Iorque de forma intempestiva e sem ser convidado, denunciando a fraude dos vinhos em licitação. No catálogo constavam seis lotes raríssimos da vinha Clos St-Denis, incluindo alguns exemplares de colheitas entre os anos 1945 e 1971. Seriam vinhos absolutamente apetecíveis e valiosíssimos, não fora o pequeno detalhe de a tal vinha só ter passado a ser engarrafada separadamente em 1982! Do catálogo constavam ainda exemplares preciosos de Ponsot Clos de la Roche 1929, apesar de o primeiro vinho engarrafado pelo Domaine Ponsot ter nascido somente em 1934.

Por incrível que pareça, Rudy Kurniawan manteve-se em actividade até há pouco mais de um mês, insistindo no esquema, altura em que foi detido pelo FBI depois de terem sido encontradas provas materiais das suas falsificações. Para cúmulo, as autoridades descobriram que Rudy Kurniawan residia ilegalmente na Califórnia há uma década, sem visto de residência que lhe permitisse manter-se no país. Poderá um mundo de luxo e aparências que chegou a proclamar um falsário como um especialista antifraude ser encarado como um sinal de falência moral?

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