Depois de provarem um Quinta da Gaivosa com meia dúzia de anos de aprimoramento não esperem encontrar a mesma exaltação na pessoa do seu mentor. Sendo o nome que está por detrás de alguns dos DOC Douro mais entusiasmantes dos últimos 15 anos, Domingos Alves de Sousa é o protótipo do anti-herói. Um homem de gestos simples, de frases curtas, vagamente tímido, mas com ideias claras sobre o papel que representa e quer representar no Douro e no mercado global dos vinhos.
Desde que lançou o Quinta do Vale da Raposa Branco da colheita de 1991 até hoje, foi construindo um leque de marcas de uma consistência notável, foi por duas vezes eleito produtor do ano pela Revista de Vinhos, houve quem o colocasse entre a "elite dos vinhos da Península Ibérica" (Michael Gisen, na Wine Enthusiast); agora está a caminho do regresso às origens ou, como ele diz, à "tradição": ao mundo dos vinhos do Porto.
Ao contrário dos nomes que fazem a maioria das marcas consagradas de DOC Douro, Domingos não faz parte nem das velhas linhagens do vinho do Porto ligadas à exportação, nem às famílias aristocráticas da região. Ele, como muito poucos, representa os valores de uma classe de produtores de uvas que souberam ler os sinais do tempo e, um dia, arriscaram e conseguiram impor as suas próprias marcas. Após uma vida no Porto, onde se formou em Engenharia Civil, Domingos regressou em 1987 à Quinta da Gaivosa, Santa Marta de Penaguião, para tomar conta das propriedades da família e, após a partilha de bens com uma irmã, foi lançando as bases de um projecto pessoal. "Tive de aguentar o barco, enfrentei dificuldades, mas por vezes é bom passar dificuldades", recorda. Por essa altura adquire a Quinta do Vale da Raposa, com 16 hectares e 12 de vinha, e é a partir da sua fruta que se estreia com o branco de 1991.
Ainda que ao longo dos anos tenha participado nas fainas da Gaivosa, não se pode dizer que Domingos fosse um expert na viticultura ou na enologia. Ele, porém, queria fazer vinhos, e se não fosse por meios próprios teria de descobrir alguém capaz de o fazer com ele. Sabia que "não era sabedor de tudo", mas a verdade é que soube rodear-se "de especialistas". Ninguém o contesta: no arranque da nova Gaivosa participaram Jorge Dias, um dos mais notáveis viticultores produzidos pela Universidade de Trás-os-Montes (UTAD), que hoje é administrador do gigante do vinho do Porto Gran Cruz e Anselmo Mendes, sem dúvida um dos mais eclécticos e brilhantes nomes da moderna enologia do país. Com vinhas excelentes e uma equipa talentosa, o primeiro Quinta da Gaivosa nasceu em 1992 e de imediato suscitou o aplauso da crítica. A criação de 1995 incluiria definitivamente esta marca no rol das mais conceituadas do país.
Qual foi o segredo para um tão instantâneo sucesso? "Talvez o nosso estilo, que se baseia no respeito pelo terroir. Apostamos na viticultura e depois tentamos fazer com que a enologia tenha o menos número de intervenções possível", explica Domingos. Ao seu lado, o filho Tiago, doutorado em viticultura pela UTAD e figura presente nas rotinas da Gaivosa desde 2002, corrobora: "Apostamos no conceito de que tudo se faz na vinha. É aqui que tudo começa. O papel do enólogo é potenciar a expressão da vinha."
Trunfos para jogar
Não há muito por onde desmentir esta estratégia. Os Gaivosa são vinhos sóbrios, elegantes, com a frescura obtida nas cotas mais altas da quinta, que chega aos 450 metros de altitude, complexos, com pouca madeira. Têm um perfil de certo classicismo, revelam aquela feição quente dos grandes tintos durienses e envelhecem bem. Domingos Alves de Sousa situa, genericamente, o seu pico por volta dos "12 anos de idade". A primeira colheita do Gaivosa resultou em "cinco ou seis mil garrafas", o máximo obtido foi em 1997, com 27 mil.
Sendo a porta-bandeira da casa, a Gaivosa é tratada com especial deferência. "Mexe-nos muito. E, entre as nossas propriedades, é a que dá melhores vinhos", diz Domingos Alves de Sousa. Mas, para crescer, a empresa Alves de Sousa precisava de terra. Paulatinamente novas quintas vão sendo compradas: a do Vale da Raposa, já referida, a das Caldas, a das Aveleiras, a da Estação e, há quatro anos, a Quinta da Oliveirinha, já no Cima Corgo, bem no coração da galáxia das grandes quintas do vinho do Porto. Ao todo são 110 hectares de vinhas, nos quais Domingos Alves de Sousa e a família (além de Tiago, também Andreia e João participam nas actividades da empresa) conseguem produzir 300 mil garrafas por ano.
Para as novas vinhas conquistadas os Alves de Sousa não precisaram de inventar uma nova receita. O caso de sucesso da Gaivosa estava aí para o provar. Em cada caso a preocupação foi a mesma de sempre: respeitar o terroir e a sua expressão, reduzindo ao máximo as intervenções na parte da vinificação. Surgem assim marcas associadas a cada quinta. Depois a especialização acentua-se e nascem vinhos provenientes de parcelas específicas: da Gaivosa surgiram nesta tendência o belíssimo Vinha do Lordelo e o soberbo tinto proveniente da vinha do Abandonado. Há também reservas Alves de Sousa nas gamas branco e tinto. (Na semana passada, a prova de um branco de 2004 revelou-se uma belíssima surpresa pela sua frescura, nervo e complexidade.)
Não admira, por isso, que Tiago, 33 anos, mais dotado técnica e cientificamente, se tenha limitado a seguir a corrente quando chegou à Gaivosa. "É verdade que cada geração tem o dever de contribuir com algo de novo. Mas o que vinha de trás enchia-me de orgulho. Até perguntava: como chegámos a este resultado?" Não é por isso que lhe falta que fazer. "Ainda há que aprofundar as nuancezinhas da Gaivosa", por exemplo. Ou fazer 20 a 30 viagens por ano ao estrangeiro, para onde a Alves de Sousa vende 73% da sua produção, com destaque para o Canadá e o Brasil.
Ainda assim, os Alves de Sousa sabem que não será pelo lado dos DOC Douro que surgirão missões arrebatadoras no futuro próximo. Por isso, o que se segue é uma aposta no vinho do Porto. A casa já produz vintage desde 2003, mas mais como uma rubrica que compõe o portefólio da Gaivosa do que como uma aposta estratégica - apesar das críticas positivas. Mas neste universo há ainda muito por onde caminhar. Este ano lançaram um Porto branco vinificado com maceração prolongada e estágio de sete anos que obteve aplauso na exigente imprensa britânica. Os vintage vão poder ser incrementados com a produção da Quinta da Oliveirinha, um terroir Porto por definição. E na calha estão também outras categorias especiais.
Os Alves de Sousa sabem que a missão de obterem para os seus Porto o mesmo estatuto que os seus tintos conquistaram é tarefa difícil. Mas têm trunfos para jogar. Vinhas, um rosto associado à excelência, competência acumulada e conhecimento dos mercados externos. E têm também aquela simplicidade e tenacidade durienses que lhes garantem uma inabalável capacidade de combater e de resistir. Se os Gaivosa são o que são não é apenas por provirem de uma bela vinha.