A fortuna tem acasos e ironias que nos ultrapassam, fatalidades que nos sobressaltam, surpresas que confirmam que nem sempre somos donos do nosso destino. O Esporão começou assim, pleno de percalços, numa nascença claudicante e um início repleto de contrariedades. A herdade foi comprada em meados de 1973, poucos meses antes da revolução de Abril. O momento escolhido não poderia ter sido pior para a jovem sociedade Finagra. De forma quase natural, a herdade acabou ocupada por uma junta de trabalhadores como consequência inevitável da época conturbada que se viveu na fase pós-revolução, tendo-se mantido intervencionada até 1979, ano em que a Herdade do Esporão foi restituída aos seus legítimos proprietários.
Depois de tantos anos perdidos começou então a verdadeira aventura do Esporão, o plantio de vinha numa herdade imensa de 2000 hectares, a construção de uma adega e, sobretudo, a edificação de uma marca. Uma aventura que conduziu a uma revolução para Portugal e para o Alentejo, desfecho de um projecto inovador que se converteu em precursor de caminhos. O despertar do Esporão prenunciou o boom vinícola que comandou o surgimento e posterior crescimento exponencial que o Alentejo viveu durante a segunda metade da década de oitenta, a década inteira de noventa e a primeira metade deste século com a respectiva conquista das simpatias dos consumidores nacionais e internacionais.
Aventurar-se na vinha em 1973, quando o Alentejo ainda era uma região vinícola desconhecida e quase ignorada, sem direito sequer a denominação de origem, representava uma saudável dose de loucura e uma notável capacidade de antevisão, numa premonição da revolução que o Alentejo estava prestes a experimentar. Essa capacidade de adivinhar o futuro ainda se mantém actual na oferta profissional de enoturismo, na vontade de trazer pessoas à adega, no desafio de proporcionar refeições memoráveis e emoções que consolidem a marca Esporão, na aposta estética de toda a adega e paisagem envolvente, na preocupação com o ambiente, no profissionalismo que se nota em cada detalhe. E é precisamente dessa soma de pequenos detalhes que se fazem os grandes vinhos e que se cria uma imagem para um grande produtor.
E grande produtor é um epíteto que assenta seguramente no Esporão. A dimensão espanta em todos os pormenores. A escala é pouco usual para os padrões nacionais, habituados que estamos a escalas reduzidas. Tudo é grande, quase desmedido, mas com a preocupação constante de manter a dimensão à escala humana, sem imagens esmagadoras e demasiado fabris. É extraordinário que um produtor que trabalha com algo mais de 10.000 toneladas de uvas mantenha uma imagem de prestígio inabalável que em nada belisca a efígie do Esporão. Consagrar volume e qualidade parece ser o toque de magia do Esporão, a junção de dois mundos de difícil compatibilização.
O Monte Velho, um dos vinhos mais conhecidos de Portugal e que já foi quase sinónimo de vinhos alentejano, é o motor do Esporão, o corredor de fundo, o pulmão que permite manter as engrenagens bem oleadas. Com o passar do tempo, ascendeu à categoria dos clássicos, um dos refúgios seguros da restauração, que mantém uma presença assídua na mesa dos portugueses. Falar de Monte Velho é falar do Alentejo, da iniciação ao consumo de toda uma geração de portugueses, de um vinho que a maioria se habituou a tratar por tu, de um vinho directo e sem pretensiosismo que se adaptou à passagem do tempo. Os clássicos impõem respeito e consideração, e o Monte Velho já faz parte dos anais da viticultura alentejana.
Por ano são produzidas quase cinco milhões de litros de Monte Velho, o que equivale a um pouco mais de seis milhões e meio de garrafas, divididas entre quase cinco milhões e meio de garrafas de vinho tinto e quase milhão e meio de garrafas de vinho branco. Que diferença para a primeira colheita em que o Monte Velho foi produzido, em 1991, quando o acabado de entrar David Baverstock, enólogo da casa desde então, conseguiu produzir pouco mais de cinco mil garrafas do Monte Velho tinto.
Registe-se que hoje mais de metade da produção de Monte Velho é vendida fora de Portugal, exportada maioritariamente para Angola, Brasil e Estados Unidos da América. Para manter tal volume e consistência, o Esporão dispõe de uma rede de fornecedores de uvas em todo o Alentejo, de Portalegre a Beja, impondo como condição para a manutenção dos contratos que os seus fornecedores amanhem as suas vinhas em regime de produção integrada, condição indispensável para a certificação iminente do Monte Velho como vinho de produção sustentável.
Mas a verdade é que ao Monte Velho associamos essencialmente a ideia de vinho fácil e simples, agradável e de preço sensato mas sem os requisitos suficientes para poder, ou merecer, ser guardado durante mais que uma ou duas colheitas. Talvez para contrariar tal prognóstico, a Herdade do Esporão decidiu realizar uma pequena prova vertical dos seus Monte Velho, distribuídos pelas colheitas 2012, 2011, 2010 e 2008 nos vinhos brancos, e 2012, 2011, 2010, 2009, 2008, 2007 e 2004 nos Monte Velho tintos. Se a prova me pareceu menos óbvia nos brancos, onde, apesar de os vinhos se defenderem bem, o factor tempo começa a pesar dois anos após a colheita, nos tintos o Monte Velho foi uma revelação.
As colheitas 2008 e 2004 mostraram uma graça, jovialidade e capacidade de guarda inesperadas para um vinho deste volume de produção e cujo preço de referência ronda os quatro euros, surpreendendo pela robustez e agradabilidade proporcionados... passados quase uma década. Quem diria?