Fugas - vinhos

Miguel Manso

Quem gosta de vinhos e de vinhas tem de ir ao Pico

Por Pedro Garcias (crónica)

Quem encara o vinho como um elemento cultural, e não como uma mera bebida, tem de gostar de vinhas. E quem gosta de vinhas não pode deixar de visitar a ilha do Pico pelo menos uma vez na vida. O perigo é ficar enfeitiçado para sempre. Eu fiquei.

As vinhas do Pico são uma das mais belas criações da natureza e da humanidade, uma fonte permanente de encantamento e de descoberta. Quando julgo que já vi tudo, sou sempre surpreendido com uma pequenina vinha-jardim a rodear um rochedo, uma hortinha no meio do caos de pedra das curraletas, uma adeguinha pintada de branco a brilhar na negritude da lava ou, como aconteceu da última vez, com um agricultor já velhinho que faz um delicioso Verdelho nas mesmas pequenas pipas de sempre e à moda de sempre, sem adição de álcool, apenas com uvas bem madurinhas colhidas no majestoso lajido da Criação Velha, de frente para ilha do Faial.  Uso diminutivos não por uma questão de escala, mas apenas porque é a forma mais ternurenta de expressar um sentimento de espanto por tanta beleza e devoção a uma cultura.

No Pico, pela força da montanha, do mar e da pedra vulcânica, a paisagem vitícola assume um enorme dramatismo, junta estética e sacrifício, necessidade e loucura. A visão das curraletas (uma malha apertada de quadrículas formadas por pequenos muros de pedra solta no meio das quais são plantadas algumas videiras) é por si só espantosa. São quilómetros e quilómetros de pedra solta arrumada para libertar um pedaço de terra e proteger as videiras do rocio do mar. Muito desse imenso reticulado assenta sobre lajido, uma massa de lava petrificada. Antes de ser viticultor, o picaroto começou por ser pedreiro, desfazendo e arrumando pedra para chegar à terra fértil. É a quantidade de pedra e de terra disponível que determina a esquadria dos muros e das videiras. Nenhuma curraleta é igual à outra, mas, vistas de longe, as vinhas ganham uma geometria quase cartesiana. 

O que os habitantes do Pico construíram na base da montanha, onde a lava mais se acumulou, foi verdadeiramente colossal. E o que se vê, quando se sobrevoa a ilha ou se viaja ao longo dos cerca de 30 quilómetros de área classificada como Património Mundial, é apenas uma parte da epopeia. Por debaixo das grandes manchas de faias, urzes e incensos que reverdecem a ilha há centenas de hectares de vinhas soterradas. As videiras já foram comidas por outras espécies, mas o imenso puzzle de curraletas, mesmo desmoronado, mantém a arquitectura inicial. Com os apoios generosos que são atribuídos à reestruturação de vinhas no Pico, muitas dessas curraletas estão a ser desmatadas e reerguidas, pondo a descoberto uma paisagem vitícola assombrosa que o abandono, precipitado pela filoxera, deixou em pousio durante muitos anos.

Pouco a pouco, o Pico vai ganhando a forma que teve até à primeira metade do século XIX, quando o vinho chegou a ser a base da economia da ilha, quando a ilha era mais preta do que verde. É como se a borboleta voltasse à crisálida, para nascer de novo. Quem gosta de vinhas e de vinhos devia assistir a esta transformação. O renascimento vitícola do Pico e dos seus brancos salinos e vulcânicos tem algo de heróico e de emocionante. 

 

 

 

--%>