Fugas - notícias

David, meu chefe

Por Rui Cardoso Martins

Uma entrada antes da ementa. Isto custa, mas tenho de cumprir o que percebi uma vez, não vale a pena dizer que não vale a pena, que sei que nestes momentos o que eu disser não serve de nada, etc.

Não acredito na palavra da salvação, mas as palavras são salvadoras. Um sussurro, um telefonema, um SMS, o arrepiante pedido dum jornal... escreves sobre ele? Se não tivermos, nestes momentos, as palavras dos outros, o que é que temos, o que nos sobra? Um grande beijinho à Lila e à Joana, a mulher e a filha tão queridas pelo David, os meus sinceros pêsames a toda a família e amigos.

Que obituário queres ainda do meu coração, jornal PÚBLICO? Vinte anos, mais uma notícia. Não só amigos, mestres. O Fernando Semedo, o César Camacho, o Torcato Sepúlveda, a Tereza Coelho (não só mestre, mulher), agora o David.

Lava a loiça, tenta perceber o que não entendes.

Fui um dos cavalheiros da enorme távola redonda do David, mas pouco sei sobre adstringência, excesso de taninos, pouca acidez, vou para sempre evoluir mal na garrafa, só sei se gosto ou não gosto. Há um ano, tivemos uma grande festa no Alto Alentejo, atrasada mas fez-se. Um "almoço ajantarado", como brincava o David, que por acaso começou às 13h30 e terminou de madrugada, uma refeição extraordinária, delicada, fora das normas (vinte pratos diferentes), que lhe dedico, falo dela num conto que por acaso sai este fim-de-semana. David, nem o leste: o Estômago Animal é ficção, mas é teu de verdade.

No dia seguinte, tive a surpresa de ver cozinhar, em casa dos meus pais, serra de S. Mamede, com tachos e sertãs indignos do momento, dois (em todos os sentidos) enormes cozinheiros, o chef José Júlio Vintém e David Lopes Ramos. O primeiro inventou enguia crua marinada e reelaborou o guisado de ouriço-cacheiro com alho francês, o David fritou os tordos, assou a lampreia no forno e cozeu a canja de pombo com nabo, que decretámos nessa tarde o melhor caldo do mundo. Os pássaros cantaram, os gatos miaram, as moscas amoleceram, as vinhas floresceram, os coentros explodiram, a ribeira cresceu.

Gostava de te abraçar outra vez, David, pão e azeitona no prato, flor de sal na ponta do indicador, ouvir-te a opinião sobre um texto, um livro, o melhor restaurante do mundo, a política, o jornalismo, um país. Sabes que, atrás do pico da serra, a montanha que vemos desse pátio, os espanhóis batem palmas e cantam: quase nos morre a alma quando um amigo se vai. Estava prometido, não vai ser.

Ao longo dos anos, o David convida-me, ao Luís Pedro Nunes, ao Luís Miguel Viana. Amizade e, de vez em quando, logística: nem o David, com aquele ar de Pai Natal à paisana, conseguia provar tantos pratos sem levantar suspeitas. Entrava incógnito nos restaurantes, a reserva feita noutro nome, e voltava para tirar a prova dos nove. Recusava a fama da televisão, para não se mostrar. Creio que o David é a única pessoa do mundo a quem nunca vi cometer uma injustiça. Isto decorria da sensibilidade e da sua inabalável dedicação ao dever. Ser um grande crítico gastronómico e conhecedor de vinhos é um trabalho difícil, parece brincadeira, não é. É um trabalho que entra nos domínios da maior realização humana: a Arte. No que encontrava mal por incúria ou má-fé, não tinha perdão, mas sempre bem-educado. Erros por ignorância, tentava ajudar. O David disse uma coisa que pus directamente em livro, parece ordinária, mas tentem ouvi-la na sua voz de madeira, soprada e alegre, atravessando a verdade das palavras:

A vida dá trabalho

não é pôr o dedo no cu e cheirar.

Isto aprendi com o meu amigo David.

Orgulho-me de lhe ter apresentado a cacholeira de Portalegre, branca e cozida, que considerava o paté genuíno de Portugal, e que se deve acompanhar, ouvi com surpresa, mas é verdade, de vinho branco ou champanhe, o tinto pesa. Ele mostrou-me, numa excursão a Trás-os-Montes, no gelo do Inverno, o sabor do presunto de porco bísaro de Vinhais, os pratos de caça, os vinhos do Porto e a biblioteca desarrumada do Solar Bragançano, do Desidério, o homem dos ombros largos.

De repente isto, quando ia para a reforma. Melhor, quando ia escrever sem estar preso a um emprego. A ideia de reforma é obscena para os que amam o seu trabalho. Vários amigos organizaram, a meio caminho entre Lisboa e o Porto, um jantar que ia ficar na história, como a memória do David e os seus textos.Discutíamos na Internet a prenda, se um computador portátil (qual reforma?...), se um telemóvel. Um telemóvel! Nem morto o ligarás, David, temos de arranjar maneira de falar de outra forma.

Não o fui ver ao hospital por respeito ao sagrado princípio de o ver alimentado. Desde que isto começou, conversámos uma vez através do telefone da família. Mais tarde celebrei na varanda, a pensar nas anunciadas melhoras do Ramos, a tardia chegada da Primavera. Dias depois, o Luís Pedro contou-me que o David lhe pegou nas mãos e disse "parece que não me safo", depois o Luís Miguel escreveu que lhe tinham dito que talvez sim, talvez sim, e o Manuel Carvalho, o Agostinho Leite, o João Paulo Martins, o Duarte Calvão, o António Melo, o Pedro Garcias, o... mas depois, olha, depois não.

E tu calado, calado.

Tantas vezes brindámos com um cálice de vinho. Agora, por acaso, estou a beber lágrimas. Têm sal a mais, David.

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