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A Festa dos Tabuleiros é preparada quase em segredo por centenas de pessoas que, durante meses, recortam milhares e milhares de flores e ornamentos em papel - para as ruas do centro histórico de Tomar e para os 700 tabuleiros que este ano desfilarão. A festa toma Tomar de 2 a 11 de Julho. Fomos espreitar como se prepara.
Quem disse que as flores só nascem na terra? As mãos de Céu Farinha, por exemplo, são raiz de um amarelo intenso que se tornará, em poucos segundos, o olho de um malmequer. Assim: dobra-se a folha de papel na esquina da mesa; volta a dobrar-se a meio, no comprimento; vai-se enrolando depois, até ficar feito o olho.
Fazer nascer uma flor parece simples aos olhos de quem vê. Complicado mesmo é fazer. A própria Céu, "de início, não sabia fazer nada". Agora, já sabe que, em seguida, tem que cortar o que fica como um caule. E enrolar o arame em verde e, por fim, espetar na flor branca. Em dois minutos, nasceu um girassol.
Quando se sobe à sala de cima da Junta de Freguesia de Santa Maria dos Olivais, em Tomar, é que se percebe que um girassol é apenas uma gota num oceano. Estão aqui milhares de flores de papel, qual tesouro escondido no sótão, à espera de serem colocadas nos tabuleiros que dão o nome à festa ex-líbris de Tomar, que este ano culmina a 10 de Julho. Tesouro, sim, que as flores são, por enquanto, um pequeno segredo que se tenta manter o mais possível. "Para que o efeito seja maior no momento em que se vê o cortejo dos tabuleiros", diz o presidente da junta de São João Baptista, Augusto Barros.
Realizada de quatro em quatro anos, a Festa dos Tabuleiros, que este ano decorre entre 2 e 11 de Julho (com o cortejo principal no dia 10) é decidida, assumida e protagonizada por toda a população. Mesmo se, actualmente, quem mais flores faz são mulheres recrutadas entre beneficiários do subsídio de desemprego ou do Rendimento Social de Inserção.
Sem elas, concordam os presidentes das juntas de Santa Maria e de São João Baptista, seria impossível ter os tabuleiros para a festa. Benditas prestações sociais, portanto, que permitem manter vivas tradições destas. Aqui, em Santa Maria dos Olivais, quem garante os tabuleiros deste ano são Anabela Amorim, Paula Cristina Pires, Céu Dinis, Júlia Pereira, Graça Ferreira, Lucília Silva e Luz Trindade. E ainda Manuela Filipe, a única voluntária do grupo (há outras que não estão agora e que vão passando ou fazem trabalho em casa), abelha-mestra na arte de fazer flores.
Festival de cor
Entráramos na sala de cima. Mil hastes, cinco para cada um dos 200 tabuleiros, estão penduradas numa estrutura de arame montada para o efeito. Cada haste tem dezenas de arranjos - podem chegar a 100 flores de papel em cada uma: rosas de diferentes cores e géneros, orquídeas, papoilas, margaridas, brincos-de-princesa, tulipas, coroas imperiais, malmequeres, jarros, lírios, hortênsias, cerejas, antúrios, ibiscos, anémonas, amores-perfeitos e, claro, girassóis. Um festival de nomes, formas e cores a imitar a natureza. Ou não. "Como a natureza, não se consegue fazer. Mas vou vendo flores ou livros e também na Internet", conta Manuela Filipe. "Vejo também documentários, memorizo e vou fazer a seguir o modelo", conta, sobre o seu método de recolha de figurinos. Manuela sentiu pela primeira vez "o bichinho" há mais de 30 anos - tinha 13 quando levou o primeiro tabuleiro à cabeça, já que essa tarefa cabe às mulheres, no cortejo quadrianual, que este ano calha dia 10.
A organização da festa começa, aliás, nesta sala - estamos ainda em Santa Maria. As hastes estão penduradas em grupos de dez, iguais entre si. O presidente da junta, António Rodrigues, explica: os dois tabuleiros que desfilam lado a lado são iguais entre si. Por isso, são necessárias dez hastes com flores semelhantes, cinco para cada um. No caso desta junta, as papoilas são dominantes: dois tabuleiros desta flor intercalam com dois de outra.
Prontas as flores, como se prepara o tabuleiro? No total, entre flores e estrutura, são dois ou três dias, em média, para cada um. Mas se formos à freguesia de São João Baptista, onde a maior parte dos tabuleiros já estão prontos, percebe-se melhor o trabalho necessário.
Aqui, o primeiro momento pode enganar. O odor a pão acabado de sair do forno faz pensar em padaria e forno. E faz crescer água na boca, mesmo que se tenha acabado de tomar o pequeno-almoço. Centenas de pães já estão colocados nos 110 tabuleiros atribuídos à freguesia - o número é definido tendo em conta a população, embora Santa Maria se tenha excedido. Diz o presidente que não é possível recusar tantos pedidos para levar tabuleiros, argumento que levanta pequenas críticas das outras quinze freguesias do concelho. Este ano, haverá um total de 700 tabuleiros, cabendo às duas freguesias urbanas a fatia maior.
Vamos então ao processo: fixam-se cinco canas de vime ao cesto; espetam-se os pães nas diferentes canas (uma média de seis em cada); coloca-se a coroa, que é atada às canas; trava-se, finalmente, cada um dos pães, atravessando pequenos pedaços de cana entre duas hastes. Para as flores, colocam-se cinco arames desde a coroa até ao cesto. São eles que servirão de base às hastes em que foram colocadas as armações de flores. O cuidado, depois, está em fixar bem as hastes de flores aos arames, de modo a que estes fiquem completamente cobertos de vegetação ou flores - sempre de papel, claro. No final, coloca-se por cima a pomba, símbolo do Espírito Santo, ou a cruz de Cristo, símbolo da ordem que se ligou à cidade de Tomar pela sua presença no convento.
Ninguém dorme
Tudo somado, cada mulher leva à cabeça uma carga de 13 a 15 quilos, por vezes 17, durante as quatro ou cinco horas que dura o cortejo pelo centro histórico deTomar. No momento culminante, há ainda o esforço suplementar do levantar de todos os cestos ao mesmo tempo, na Praça da República, diante da Igreja de São João Baptista. Este é um trabalho de meses, minúcia e paciência. Rosa Sousa, voluntária em São João Baptista, é especialista em malmequeres. Este ano, a conta já ia em 6450, até final da semana passada.
Na junta de São João Baptista, além de Rosa Sousa, estão Fernanda Vieira, Teresa Gaspar, Judite Félix, Paula Silva, Anabela Abreu, Rita Salvador e Lurdes Mendes. No meio de uma paleta de azuis, vermelhos, laranjas, brancos, amarelos, verdes, lilases, rosas. E as flores? Não se desvenda o segredo se soubermos que, também aqui, há algumas já referidas em Santa Maria, além de sardinheiras, buganvílias, magnólias, junquilhos, cravos, alcachofras, uvas ou aloés vera.
O mesmo sucede com o centro histórico da cidade. No dia 8 de Julho, sexta-feira, serão inauguradas as várias ruas ornamentadas, para as quais também estão a ser feitas milhares e milhares de flores em papel. Na noite anterior, ninguém dorme: é preciso colocar no lugar as ornamentações que, entre vizinhas e moradores, se foram preparando.
Este ano, explica o mordomo da festa, João Vital, foram incorporados muitos alunos das escolas secundárias. Mas há centenas de pessoas a trabalhar já desde Junho do ano passado.
A Festa dos Tabuleiros culmina com o cortejo multicolor de dia 10. Prevêem o município e os responsáveis do Turismo que a iniciativa deverá atrair à cidade meio milhão de visitantes durante o fim-de-semana de 8 a 10 de Julho. Para a segunda-feira seguinte está reservada a distribuição da pêza ou vôdo: carne, pão e vinho são oferecidos aos mais carenciados.
O vôdo já foi uma espécie de banquete colectivo da cidade, mas o aumento da população fez com que se fosse restringindo apenas a quem mais necessitava. Actualmente, é a comissão central que oferece o vôdo, popularmente designado por bodo. Não é a mesma coisa: vôdo tem origem em voto, ou promessa, explicava Pinharanda Gomes no II Congresso do Espírito Santo, em Junho de 1998. Actualmente, o vôdo é distribuído depois de analisadas as inscrições de candidatos.
Um gesto que, ainda assim, está intimamente relacionado com a festa, uma celebração ligada ao culto do Espírito Santo. Pinharanda Gomes dizia, na mesma ocasião: "O vôdo significa um compromisso de partilha e de fraternidade, de despojamento de um bem a favor do outro, um dom, portanto gratuito. Significa ainda que há abundância, que é tempo de abundância." Abundância de cor, alegria, fraternidade.
A Rainha Santa e o turismo
Terá sido Santa Isabel a promover as festas do Espírito Santo? Conta Aurélio Lopes (Devoção e Poder nas Festas do Espírito Santo, ed. Cosmos) que a tradição atribui à Rainha Santa a responsabilidade pela introdução do culto do Espírito Santo em Portugal. Mas o mesmo autor nota que, antes de Isabel de Aragão vir para Portugal e casar com Dom Dinis, em 1283, já em Benavente existia uma Confraria do Espírito Santo, que terá tido origem possivelmente em 1232, extinguindo-se em 1560 para dar lugar à Misericórdia. O compromisso da confraria incluía a obrigação de "dar aos pobres um convite ou bodo, em cada ano, à custa dos confrades".
Assim, explica Aurélio Lopes, no dia de Pentecostes, os confrades distribuíam aos pobres, "num cortejo cerimonial, um bodo de pão e carne". O compromisso inseria-se num mais vasto conjunto de práticas caritativas próprias deste tipo de instituições, e que incluíam hospitais e albergarias, por exemplo.
Como festa ligada ao culto do Espírito Santo, também os Tabuleiros terão nascido com este objectivo. No século XX, o turismo foi fazendo da festa um cartaz de promoção regional, mantendo a tradição da distribuição de comida (pão, carne e vinho) pelos mais necessitados. É isso que acontece na segunda-feira, dia 11 de Julho, com a distribuição da pêza a pessoas carenciadas previamente registadas.