Fugas - Viagens

  • Sandra Ribeiro
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José Júlio Vintém e a serra de São Mamede

Por Mónica Franco

Fechou o restaurante, agarrou na mulher e nos três filhos e apanhou um avião perseguindo a esperança de um novo mundo. Viveu cerca de um ano no Brasil. Regressou a casa agora e reabriu o Tomba Lobos no mesmo canto da serra de São Mamede onde o fez crescer. Abriu-o a 10 de Junho, celebrando à sua maneira o seu jeito de ser português. Mais do que português, alentejano! José Júlio Vintém, o lobo da serra.

Fizemos as contas. Conhecemo-nos há mais de 10 anos. E encontrámo-nos agora no mesmo lugar onde falámos pela primeira vez. Por vezes, a vida é redonda. Desenha um círculo perfeito. Dêem-se voltas e reviravoltas, ande-se para trás, para a frente e para os lados, fechem-se uns negócios, abram-se outros, mude-se de cidade, de país e, no “final”, regresse-se ao lugar onde se foi feliz. Assim fez José Júlio Vintém.

Abriu o primeiro Tomba Lobos em Portalegre em 2001 e passado um ano mudou-se para a serra de São Mamede, onde permaneceu quase uma década. Voltou para a capital do Alto Alentejo para inaugurar um Tomba Lobos mais chique, em 2010, fechou-o passados dois anos, agarrou na mulher e nos três filhos e voou para o Recife, no Brasil, atrás de um sonho que parecia poder tornar-se realidade. Não tornou. E o lobo da serra regressou.

Quando nos conhecemos, o motivo da reportagem era a abertura do restaurante da serra de São Mamede. Desta vez, o motivo foi a reabertura. O regresso do cozinheiro alentejano ao espaço original, ao lugar onde se fez crescer, o local que o colocou na lista dos melhores chefes de cozinha portugueses — e certamente um dos mais conceituados a trabalhar fora das grandes cidades.

“Zé” Júlio sempre quis ser “cocineiro”. Desde os três anos de idade que o dizia à mãe, a doceira de serviço do Tomba Lobos. Passou a adolescência a cozinhar para os amigos, colegas de escola, professores. Até que conheceu Catarina e, mesmo antes de terem o primeiro filho, abriram o primeiro restaurante.

Beber da fonte

Encontrámo-nos na serra de São Mamede numa escaldante quarta-feira de Julho. O termómetro marcava 32 graus, não corria uma aragem. Almoçámos borrego assado com umas cebolinhas postas em vinagre durante um mês, acompanhámos com vinho tinto e rematámos a refeição a beber água directamente da nascente junto ao pico. “Esta água é a melhor coisa do mundo”, dizia-nos o cozinheiro, enquanto colocava as mãos em concha e se preparava para o primeiro gole. “Quando estou de ressaca, venho aqui de propósito para a beber. Fico novo!”

Estávamos a cerca de mil metros de altitude (o cume mede 1025m), no coração do Parque Natural da Serra de São Mamede, o único lugar do qual José Júlio sentiu falta nos 365 dias que passou do outro lado do Atlântico. “Esta serra é toda beleza, está muito arborizada, toda ela é vida. Consegue-se caminhar pela serra toda, tem nascentes, muita água, grande diversidade de plantas e animais. É um Alentejo que não existe em mais lado nenhum. Chamam-lhe a serra de Sintra do Alentejo por algum motivo”, explica enquanto caminhamos por parte dos 29.694 hectares do parque, entre carvalhos, pinheiros, castanheiros, sobreiros e azinheiras. É frequente ver o mentor do Tomba Lobos a apanhar cogumelos e medronho por aqui — na época deles. É da serra também que provêm os javalis e veados usados para confeccionar alguns dos famosos pratos de caça do restaurante — na sua época.

E é espalhados pela serra que se encontram os pequenos agricultores a quem José Júlio compra os produtos hortícolas utilizados nas suas receitas — deliberadamente sazonais e locais. O “tio Luís”, a “dona Maria”, os tomates, batatas e figos de uns, o queijo de cabra, as cerejas e beldroegas de outros.

“Só trabalho com agricultores de São Mamede”, declara. “Tenho uma horta a 120 metros, outra a 400. A mais afastada fica a três quilómetros”, conta com graça. Fomos averiguar as distâncias, não fosse o conceito alentejano de “já ali” estar aqui implicado. Não estava. Quase não dava vontade de sentar no carro escaldante para percorrer os poucos metros que separam estas pequenas quintas. E quase não dava vontade de sair da frescura da conversa com os velhinhos simpáticos que sabem tudo sobre aquela terra que os viu nascer, crescer, envelhecer e certamente os verá morrer.

“Tens de ter muito respeito por estas pessoas”, diz-nos Zé Júlio pelo caminho. “Quando compramos dois queijos que custam 3 euros e sabemos que a pessoa se levanta às seis da manhã para ordenhar duas cabras, chegar ao fim de cinco horas de trabalho e levar três euros para casa...!” Não é uma história hipotética que nos conta. É o caso da dona Maria, que fomos conhecer, muito magrinha, sentada à sombra a cortar maçãs pequenas para dar às cabras.

“Imagina uma cultura de trabalho de subsistência, pessoas que sempre trabalharam no sentido de governar a casa, os filhos, para quem um euro e meio, dois euros, fazem toda a diferença. Tu, se for preciso, perde-los no meio da mala... Não temos noção”, continua o alentejano com o sotaque recheado de indignação. A sua forma de as ajudar é incluí-las no dia-a-dia. Ajudar comprando. “Não pode ser de outra maneira.”, afirma peremptório. “Criei uma relação de amizade e de ajuda com estas pessoas.” Nota-se.

Totalmente Enfrascados

José Júlio, 42 anos, regressou a Portugal em Dezembro de 2013. Desistiu de esperar que os restaurantes no Brasil passassem do projecto a prática. Ainda deu consultorias, conheceu o Recife como poucos habitantes locais, os mercados, as hortas, as pessoas. Este “ano sabático” serviu sobretudo para ter uma coisa inédita na sua vida: “tempo para estar com os filhos.”

“No Recife tinha uma consultoria num hotel e projectos para restaurantes, para os quais dei o conceito, fiz a carta, tudo... Quando decidimos voltar, ficou tudo em águas de bacalhau. Tivemos um restaurante lindíssimo praticamente pronto, um sítio muito bonito, que não se chegou a concretizar. Acho que não estávamos com o espírito brasileiro para esperar que acontecesse...”

No regresso à terra-natal, o objectivo era produzir Enfrascados, saladas alentejanas vendidas em frascos, Tomba Lobos para levar para casa. “Vivendo no interior temos de ter uma maneira de nos sustentar que não seja só o restaurante”, comenta Catarina, a mulher, enquanto comemos uma salada de beldroegas com queijo da ilha muito especial.

Há anos que Catarina insistia em pôr em marcha este projecto. Foi preciso ir ao Brasil e voltar. “Em Dezembro, o Zé foi trabalhar um mês para o hotel H2O e eu comecei a distribuir os Enfrascados. Vendi mais de mil frascos.” O cabeça-de-cartaz é a Perdiz de Escabeche, que custa 15 euros porque no frasco de 200 gramas está uma perdiz inteira. As restantes quatro combinações — coelho em molho de vilão, salada de orelha, escabeche de pato e de fraca — são vendidas a 6,50 euros, por enquanto exclusivamente in loco.

Quando chegaram do Recife, começaram por procurar uma cozinha para confeccionar e acondicionar as saladas e acabaram por arrendar o mesmo lugar na serra, à beira da estrada, em Pedra Basta, entretanto ocupado e entretanto desocupado. Decididamente, não se iam ficar pelos frascos...

Na nova ementa do novo-velho restaurante estão dois pratos com que abriu o primeiro Tomba Lobos, ainda em Portalegre — os peixinhos da horta e a sopa de tomate com ovo escalfado —, mas também as receitas que o catapultaram para um novo patamar no panorama da alta cozinha portuguesa — como as pétalas de toucinho, o achigã grelhado com batatas a murro, o rabo de boi assado no forno — e os desafios que envolvem entranhas e extremidades. “Sempre gostei de desafiar as pessoas, ouvi-las dizer que, normalmente, não gostam de orelha de porco, mas que no José Júlio comem.” Na carta actual, que aposta forte nos petiscos, dominam pratos como focinho de porco grelhado, molejas de borrego salteadas, mioleira de porco panada...

“No Alentejo é básico cozinhar uma sopa da cachola, grelhar umas molejas logo a seguir à matança do porco. Faz-se há décadas”, informa o chef de cozinha, confirmando que não o faz para seguir as tendências gastronómicas internacionais. “O pessoal tem a mania, quando chega de França, de falar do ris de veau, que são as molejas de vitela. Costumo dizer que, na ementa, temos os três ‘R’: o ris de veau, o ris d’agneau e o ris de porc”, declara com ironia.

Alentejano do mundo

José Júlio adora ter trabalho a fazer as coisas. Gosta de arranjar um carapau, uma sardinha, despinhá-los, destripá-los, aproveitar a tripa e fazer um paté, por exemplo. Está sempre a experimentar combinações novas, como o carpaccio de bacalhau com ananás que acabou por colocar na carta. Há pouco tempo juntou figos com carapau e ficou “divinal”. Uns dias antes do nosso encontro tinha arranjado umas flores de curgete, uns fígados de perdiz e ovos de coquita (uma galinha pequena) e criou um prato com isso tudo: ovos verdes e flores de curgete recheadas. Está neste momento a trabalhar num prato com os três tipos de molejas e a tentar arranjar focinhos de vaca, que normalmente vão para o lixo. Além disso, quer experimentar criar umas sardinhas anchovadas, inspiradas nas mariposas de San Sebastián, uma anchova que, segundo ele, “é a melhor coisa do mundo”.

“Sempre fui uma cabeça irrequieta, sempre fui um miúdo muito rebelde, provocador, sempre quis fazer coisas fora do normal.”, confessa-nos a dada altura da conversa, falando a respeito dos anos que passou em Alter do Chão e Castelo Branco, supostamente a estudar agricultura e engenharia de produção florestal. Regressou a Portalegre para tirar o bacharelato em Turismo e Termalismo. E poucos anos depois de abrir o primeiro restaurante foi para Itália “à procura de coisas, de outros conceitos”.

Na lua-de-mel, ele e Catarina passaram uma semana a comer e, nos primeiros anos, todas as segundas-feiras (os únicos dias de folga) eram passadas a “conhecer tudo”. “Qualquer chef, para ter a cultura geral de gastronomia que eu tenho, tem de conhecer muito, tem de viajar muito. Porque eu já viajei muito, comi em muitos lados, paguei muitas refeições em restaurantes com 3 estrelas Michelin.”

Em 2010 esteve uma semana a trabalhar no Arzak, o número 8 na lista dos melhores restaurantes do mundo, segundo a revista britânica Restaurant. Para além de perceber como funciona um restaurante com 3 estrelas Michelin, de ver como trabalham, como fazem a mise-en-place, como se organiza uma cozinha deste tipo, aí ganhou perfeita noção de como é trabalhar para o cliente, sempre com produto fresco. “É impressionante”, exclama.

Zé Júlio tem uma personalidade proporcional ao tamanho do seu corpo. É grande. Forte. Para ele, mais importante que cozinhar, é ter personalidade no que cozinha. “Sou um chef que tem receitas. Há poucos que as têm. A maioria interpreta as receitas dos irmãos Roca, do Ferran Adrià... É importantíssimo conhecer a cozinha de todo o mundo, criar uma identidade gastronómica, não estar na Internet a ver o que os outros estão a fazer, é ir conhecer, conhecer, conhecer! E só conhecendo outras coisas é que dás valor ao que fazes.”

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