Fugas - Vinhos

Rita França

O que o vinho ainda não aprendeu com a cerveja

Por Rui Falcão

A sociedade gosta de se perder em dicotomias que por vezes assumem posturas que são quase fratricidas numa guerra absurda que se pode resumir entre nós e eles, entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas.

O momento social e político actual inclina-nos a ver o mundo a preto e branco num sistema binário que se recusa a aceitar qualquer escala de cinzentos ou de outras tonalidades que se possam situar entre as tonalidades mais fortes, entre o certo e o errado.

O momento actual aponta para uma vontade popular de aceitar radicalismos tais que demonstram alguma dificuldade em ouvir os outros, vontade de se fechar em tribos mais ou menos homogéneas, empenho em se isolar no seu pequeno mundo sem contrariedades do exterior e sem vozes discordantes que possam ferir as doutrinas dominantes. Uma realidade social que se reflecte na política internacional e que tem paralelo na sociedade e na vida empresarial.

Algumas dessas cisões vêm de um passado já longínquo e raramente conseguiram ser quebradas. Uma das divisões mais célebres é aquela que divide o mundo da cerveja do universo do vinho, bebidas supostamente concorrentes e que, dizem as más-línguas, disputam o mesmo mercado. Uma verdade a que muitos se apegam mesmo se a realidade nem sempre se encarrega de demonstrar a veracidade da convicção. É, aliás, cada vez mais comum olhar para pequenos produtores de cerveja que se viraram para o universo do vinho ou, ainda mais recorrente, pequenos e grandes produtores de vinho que se começaram a interessar pelo mundo, também ele apaixonante, da cerveja.

Mas mesmo sem essas misturas de quem se situa os dois lados de uma barricada criada pelo medo e pelos preconceitos, o vinho tem muito a aprender com os ensinamentos da cerveja. Sobretudo quando falamos de cerveja artesanal, esse conceito tão inovador e disruptivo que veio transformar um sector que se encontrava dominado por um punhado de grandes aglomerados industriais que dividiam o mundo em meia dúzia de fatias monopolistas.

E depois, saindo de um limbo onde durante muitas décadas moraram, as cervejas artesanais despertaram de uma longa hibernação para a qual tinham sido remetidas, qual período de glaciação imposto pelas grandes cervejeiras. A ideia de artesanato, pureza, identidade, estilo afirmado, regresso às origens, serviu como um fato feito à medida para o renascimento de pequenos produtores e apaixonados pela cerveja que nunca tinham pensado na cerveja como um negócio.

Na verdade, também aqui podemos estabelecer um paralelismo com o vinho que viveu uma época de ouro em meados dos anos noventa do século passado, em que nasceram dezenas de marcas saídas do ímpeto da paixão de um punhado de amantes do vinho. Enófilos que ora encaravam o universo do vinho como uma promoção pessoal e social, ora o viam como um regresso à ruralidade e à pureza das origens.

As pequenas cervejeiras artesanais começaram a brotar em números cada vez mais extraordinários, oferecendo um rosto humano onde antes se percebia uma máquina industrial oferecendo cervejas plenas de sabor, arriscando em apostas diferentes e inovadoras que não temiam ser diferentes. Quase sempre embrulhadas em imagens modernas, ora elitistas ora populares, ora minimalistas ora barrocas, ora modernas ora conservadoras, ora aventureiras e provocantes, ora serenas e classicistas. Muito mais que no universo do vinho, a cerveja inovou, mudou, aproximou-se do consumidor, criou laços de confiança, abriu bares onde as novas cervejas podiam ser provadas, educou e facilitou uma linguagem, aumentando em simultâneo a complexidade do tema. Sem snobismo, mas também sem simplificações grosseiras que passassem pela afirmação simples e sem futuro do “gosto ou não gosto”.

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