Fugas - dicas dos leitores

Picos da Europa, a natureza em bruto

Por Luís António Contente - Beja

No Norte de Espanha, na região da Cantábria, existe uma fortaleza de pedra rija, gargantas desmedidas e desfiladeiros profundos. São os conhecidos Picos da Europa, uma impressionante montanha feita de cumes acerados, vertentes alucinantes e caminhos vertiginosos, onde qualquer ser humano que aí ouse aventurar-se entra numa espécie de recolhimento espiritual só comparável ao estado de beatitude contemplativa ou de felicidade divina.

No vale que abriga Potes, a capital deste pequeno paraíso, o silêncio é primordial. Na manhã húmida, gotículas de orvalho pendem das ramagens, os galos cantam ao sol que vai despertando por detrás das colinas, os chocalhos dos bezerros ecoam pelos vales como sinos de catedrais. É toda uma natureza em perfeito estado virginal que renasce para mais um dia de comunhão plena entre o homem e a montanha.

Mas conquistar a montanha tem o seu preço. É preciso pisar os seus trilhos, calcorrear os seus caminhos, escorregar no seu cascalho, subir pelas suas encostas, sentir cada uma das suas pedras até atingir o limite do humanamente possível. Depois de ultrapassada essa barreira, fica-se por cima das nuvens, dos habitantes dos céus, por cima de tudo o que é a vida conhecida. Entra-se no domínio do religioso, onde o vento que sopra entre os picos rochosos parece a voz dos deuses a sussurrar que conseguimos, que chegámos, que estamos lá e que a vitória é nossa. 

Foi esta felicidade que sentiu um grupo de intrépidos aventureiros portugueses que durante cinco dias realizaram a pé a travessia completa do maciço central dos Picos da Europa. A felicidade de contactar com lugares que respondem pelo nome de Fuente Dé, onde um teleférico nos transporta até ao cimo numa viagem em que a vida fica suspensa por frágeis cabos de aço. E depois a satisfação do encontro com o esplendoroso Naranjo de Bulnes, uma parede natural que ao entardecer ganha tons alaranjados e que, com os seus 550m, se tornou a meca da escalada da Península Ibérica. E também outros nomes como Caín, rota do Cares, refúgio do Collado Hermoso... Uma avalanche de conquistas que exigem subidas suadas e descidas agrestes ao longo de várias horas. 

Estamos no reino do urso pardo, da águia-real e do lobo que procura algum rebeco transviado. O passo do homem é vagaroso, o andamento quase marítimo, os músculos vencem mais uma inclinação, os tendões esticam como a corda de um arco flexível. É preciso superar mais um desnível que exige um esforço redobrado mas, em compensação, a paisagem torna-se deslumbrante, caindo a pique, afunilando-se nos vales, com encostas mansas cobertas por bosques frondosos para, logo na curva seguinte, rasgar de novo o céu com uma explosão desmesurada de cortes certeiros no azul celeste. 

A recompensa chega pelo fim da tarde, à volta de uma mesa, comendo queijo de Cabrales, sorvendo longos golos de sidra fresca, enquanto a noite cai sobre os vales, onde bem lá no fundo as luzes das aldeias se assemelham a um presépio iluminado visto de cima. São assim os Picos da Europa, um reconforto para a alma.

[FUGAS nº 543 - 9 Outubro 2010]

--%>