Fugas - dicas dos leitores

Marrocos ao toque do muezzin

Por Maria João Castro - Lisboa

A primeira incursão por terras marroquinas deu-se há mais de uma década, numa viagem de reconhecimento das cidades imperiais. Uma segunda incursão levou-me mais além, numa viagem de carro pelo deserto afora e pela alma adentro. Afinidades nas duas? Certamente. Preferências? Talvez.

A uma hora e picos de avião e de um Fevereiro invernoso e húmido lisboeta, fora-me prometido que iria encontrar calor e sol, mas também uma cultura completamente diferente da minha. A sul, o tempo é vivido de maneira diversa e convém deixar deste lado da fronteira os conceitos de instante e urgente. Esta era a única informação que me tinham dado previamente. Nada mais. Escuro.

Casablanca, Rabat, Meknès, Fez, Marraquexe. Lojas e mais lojas onde se regateia para adquirir o mais simples objecto: faz parte da vivência destas gentes e ninguém gosta de vender sem primeiro acordar o preço conveniente. Talhos, bazares de artesanato, artesãos de couro, casas de especiarias, pátios fechados, fontes e tinturarias emprestam aromas e impregnam o ar das infindáveis ruelas medievais da medina.

As lojinhas sucedem-se a um ritmo assustador. Entro numa ao acaso, e logo um banquinho e o irrecusável chá estão à minha espera. O insinuante vendedor desfila então um rol de produtos: a persuasão, a insistência, o regatear, fazem com que seja impossível sair de mãos vazias. Num diminuto embrulhinho, leva-se um pedaço de Marrocos, o reflexo palpável de um mundo diferente, rico e colorido. Enquanto aguardo o troco, demoro-me a apreciar o rosto do vendedor, que possuía uma harmonia que só existe quando se é velho: parece que os anos atenuam os ângulos dos ossos, suavizam o olhar.

Por fim, o deserto e a sensação da terra queimada pelo sol, que dorme sobre a brisa e à luz das estrelas. Ao fundo, um oásis onde se vende silêncio.

O deserto, despojado de tudo, é como uma página em branco, onde posso escrever a minha história. Nunca se encontra o que se procura e eu já me habituei a isso. Agora, procuro não encontrar nada e talvez ache uma coisa. Ou não.

Há sempre, ainda que seja uma vez na vida, aquela disponibilidade para largar o fútil, para despojar do supérfluo e abraçar a solidão da viagem. O vento vai alterando a face das dunas, com a cumplicidade da noite. O mar de areia que se estende à minha frente tem ondas sob as quais o sol cai, executando um ritual de luz e sombra que me enfeitiça e conquista.

Adormeço no silêncio infinito destas terras, transportando modos de vida periféricos, existências à margem, indivíduos fora do comum, e penso como são ainda possíveis neste mundo de pacotes turísticos tantas formas diferentes de realmente viajar. Aqui, no deserto, tomo consciência plena da vida e de mim própria: aqui compreendo toda a fragilidade de se ser apenas um grão de areia perdido no deserto da eternidade.

Como que acordada de um sono pesado, dou comigo a ser empurrada para aqui e para ali, ao movimento das gentes, que, no seu quotidiano alheado, passam indiferentes por mim. De repente todo o ruído cessa. Estou em Lisboa e tudo já fora. Resta, presa ao pulso, uma recordação do aroma a especiarias e o resultado de um regatear mais entusiasta. Tudo o resto já não subsiste.

--%>