Fugas - dicas dos leitores

As férias não passam de uma fotografia

Por Hélder Wasterlain - Lisboa

Se fosse preciso resumir as minhas férias numa fotografia, seria esta. Se fosse preciso mostrar a alguém onde estou, também seria esta a fotografia que escolheria.

O Burgau é uma pequena aldeia, com cerca de 300 habitantes, situada entre a Praia da Nossa Senhora da Luz e Salema, no Algarve. Outrora aldeia de pescadores, agora lugar de transumância turística. Enquanto os poucos pescadores sobreviventes (10 ao todo) se contam pelos barcos, de cascos brancos e secos, estacionados no pontão, os turistas contam-se pelas coloridas toalhas de praia esticadas na areia.

O núcleo principal da aldeia do Burgau é composto por uma conjunção arquitectónica harmoniosa entre as casas típicas algarvias e as casas de traça moderna. A íngreme Rua 25 de Abril, o nome da principal artéria da aldeia, é realmente uma boa metáfora toponímica, já que desemboca na maior liberdade que a natureza nos pode conceder: o imenso mar azul, princípio para toda e qualquer fuga(s).

Desviando-nos da Rua 25 de Abril e infiltrando-nos nas travessas circundantes, é normal termos a sensação de estarmos a visitar uma outra aldeia escondida numa ilha do mar Egeu. Na verdade, o branco das fachadas, as janelas azuis, as buganvílias brancas, alaranjadas ou rosadas, são tudo elementos que contribuem para sonharmos com outros lugares, outros mares ou paisagens, mas não com outras gentes, porque estas funcionam como verdadeiros mapas da realidade. São as pessoas que ou habitaram, os lugares por onde passamos que nos trazem a prova necessária que nós passámos por ali e que essas pessoas também passaram por nós. Querem a demonstração?

O senhor com o braço direito ao peito e olhos esverdeados, que costuma estar sentado entre as 16h00 e as 18h00, no cimo da Rua 25 de Abril, encostado à placa azul que aponta para o "Caminho do Infantes", diz-me todos os dias com voz pachorrenta como se estivesse a lavrar as palavras que vai dizer:

- Boa tarde.

E porquê? Porque um dia disse-lhe "boa tarde" e o senhor de braço direito ao peito e olhos esverdeados respondeu com um silêncio que iria comprovar, a partir desse segundo, a sua e a minha existência para o resto das férias.

Em sítios turísticos como o Burgau é fácil perderem-se espaços que preservem as memórias da terra em troca do efémero e sazonal turismo. Para além dos arquivos íntimos de cada habitante, é raro encontrarmos a exposição e materialização pública de um passado. Neste sentido, o Grupo Desportivo de Burgau funciona como um verdadeiro museu vivo, onde a energia dos novos se esgota entre matrecos, ping-pong ou snooker e os velhos lançam efusivamente as cartas sobre uma toalha verde para no final ganharem feijões.

Nas paredes do Grupo Desportivo de Burgau está exposta esta fotografia. Não tem cor, paisagem ou mar. É composta por rostos, corpos alinhados e um campo de futebol de terra batida. Segundo os mais antigos, a foto em questão data, sem certezas, de 1950 ou 1951. Dos 15 jovens que compõem a foto, três ainda estão vivos, cinco são desconhecidos, o resto já morreu. Sempre ali esteve e por isso ainda ninguém se tinha questionado sobre a existência daquela "malta", que é o mesmo que dizer que ainda ninguém tinha passado por aqueles corpos parados e dito "boa tarde".

--%>