Fugas - dicas dos leitores

Udaipur, a cidade pintada de água

Por Maria João Castro

Começa a cair a noite. À beira da estrada, uma nora de outra era roda sem parar: um homem velho carrega uma carroça desengonçada e gasta pelo tempo enquanto, não muito longe, uma mulher de sari de bainha desfiada desaparece entre o vento e as sombras que descem da noite.

Cansada e exausta da tareia levada num autocarro antigo e desconfortável, apercebo-me que estamos prestes a chegar a Udaipur. A grandiosidade da cordilheira subverte a percepção natural das proporções. Udaipur, a cidade à beira do lago, vai-se abrindo aos nossos pés, até atingir a sua configuração definitiva.

Guardo o instante no meu cantinho das memórias. A cidade parece o único sítio onde o tempo avança. Udaipur, a cidade da aurora, a princesa das águas, edificada à beira de um lago gigante - o Pichola - abre-se em construções alvas, palácios de mármore, jardins, templos e havelis, ostentando a sua herança invejável. Foi fundada no século XVI pelo rei rajput Udai Singh e permaneceu tenazmente independente durante os períodos de denominação e britânica como capital do reino de Mewar.

A primeira paragem é para o Palácio da Cidade. Fortaleza imponente à beira do lago e que se prolonga pela margem oriental do lago. A extensão e a dimensão do Palácio da Cidade surpreende, apesar de já estar a ficar habituada às dimensões "generosas" da construção indiana.

Na rampa de subida para o Palácio, macacos saltitam divertidos. Ao mesmo tempo, um glorioso MG vermelho passa por nós; dentro um fulano na casa dos sessenta anos, fumando um charuto e com pinta de playboy, sobe demoradamente a rampa. Um empregado faz-lhe uma vénia. Saberei pouco depois que é o marajá de Udaipur, himself, a caminho da sua ala no palácio onde ainda hoje vive, com um séquito grandioso de empregados e mulheres.

É um dos maiores palácios de que há registo, com os seus 4700 metros de comprimento e 300 de altura. Este espaço soberbo foi sendo construído pelos sucessivos 22 marahanas da dinastia Mewar, uma das dinastias mais antigas do mundo. Cada soberano engrandeceu o conjunto a seu gosto, acrescentando-lhe salas, divisões e alas.

No meio do lago ergue-se o imponente Lake Palace Hotel, outrora residência de Verão do marajá e hoje um dos hotéis mais charmosos do mundo, que visitamos ao início da tarde. Os vidros de cores diferentes nas janelas reflectem a luz do sol de tal modo que criam imagens diáfanas no chão e nas paredes. Lá fora, da janela rendilhada a pedra, a cidade rendida a nossos pés.

Num dos muitos pátios superiores, a vista sobre o lago Pichola desafogada emoldura a paisagem. Mulheres, nos seus saris coloridos, passeiam-se sorridentes e bem-dispostas.

Nos terraços abertos, cadeiras de verga convidam ao repouso ou a uma conversa feita em surdina para não perturbar o ambiente. Os baloiços suspensos no tecto das alas das suites convidam a sentar, deixando fruir cada momento, embalando a quimera e a realidade. Os jardins escrupulosamente cuidados, a exuberância da arquitectura em mármore branco, o chão imaculadamente alvo e brilhante obriga-me a descalçar-me para sentir a sua polidez, a sua perfeição e lisura.

Os pequenos pavilhões brancos suspensos sobre a água, o cuidado dos empregados que parecem levitar só para não incomodar os hóspedes, as buganvílias que caem em cachos pelas balaustradas e rompem o branco que nos rodeia, dão uma dimensão quase irreal, incorpórea, etérea mesmo.

Nova alvorada, novo dia indiano. Saída para o aeroporto de Udaipur, embarcando para um novo destino indiano.

Olho ainda Udaipur, altiva e bela. O seu reflexo nas águas do lado duplica-lhe o encanto, turvando o meu discernimento, pois parece engrandecer-se à medida que fica para trás...

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