Poderia supor-se que o passado, uma vez que já foi, é algo imutável e acabado, mas na verdade nada disso é certo: cada vez que o olhamos, ele varia, projectando-se em tonalidades diferentes consoante o estado de espírito do momento. O passado reescreve-se sempre que é enunciado, dilatando a importância de um acontecimento ou calando outro. Manhã de um céu azul perfeito. Pequeno-almoço ao som das aves, soberbo. Trouxa no porta-bagagem e ala que o sol já vai alto. Ao cabo de dez horas, estou à porta de um hotel modesto de Barcelona. Os lençóis têm o odor das coisas habituadas ao desuso. Sem demoras, adormeço irremediavelmente.
No dia seguinte, de energias recarregadas, predisponho-me a conhecer finalmente a cidade. Barcelona é uma cidade de arquitectura moderna e marcante. Mais do que uma cidade, é um estado de espírito: a capital da Catalunha é criativa e grandiosa.
Inicio as visitas sob o mote Gaudí: La Pedrera, o Parque Güell, a casa Batlló; obras megalómanas que fazem lembrar construções de areia. Continuo a deambulação pela Sagrada Família, o Monte de Tibidabo, a coluna de Cristóvão Colombo, o Palácio da Música, basílica de Santa Maria Del Mar, o Museu Picasso, o Bairro Gótico, e o Bairro de Montjuïc com o seu Museu Nacional de Arte da Catalunha e a Fundação Miró. Seguem-se a Barceloneta e o Porto Olímpico (onde a cidade redescobriu o mar) e, por fim, as ramblas. Aí descansamos, comemos umas tapas e desfrutamos do final do dia que desaparece no horizonte. Conversamos entre o que fazer ou o que não fazer. Discussão. Risos. Um vinho excelso, peixe. Tagarelamos satisfeitos e despreocupados, ou não fosse a alegria "a coisa mais séria da vida", como Almada Negreiros dizia.
Um manto lilás cai agora sobre a cidade: é o sol a dizer adeus, brindando com uma cor exótica a atmosfera que inunda tudo. Enquanto o sono não chega, desfolho o guia da cidade sem urgências. Parece que esta cidade faz jus à ideia de Rimbaud de que é preciso ser-se absolutamente moderno. Fecho os olhos sem dar por isso e entro em lugares imaginários onde vamos sem nunca ter ido.
É forçoso partir. Quanto a mim, levo algo de valioso comigo: a imagem rica e colorida desta cidade de formas ondulantes que se preenchem numa miríade de cores inverosímeis. Ponho o carro a trabalhar e preparo-me para a viagem de regresso. Nas horas de condução a caminho de casa, e enquanto a paisagem corre serena do lado de fora, desenho os dia passados.
O motor do automóvel está de novo a roncar e a planície corre lá fora. Enquanto o conta-quilómetros debita números e o depósito de combustível diminui, constato que o objectivo não é ir e vir, é fazê-lo permanecendo... assim Barcelona permanece sempre que a procuro nas amarrotadas notas da consciência.