Os sinos titilantes dos rebanhos de cabras quebram o emudecido quadro, império de terra nua e árida, planície estéril só percorrida pelos velhos Tata e pelas mulheres, belas e altivas, que, com os seus saris garridos, pontilham de cor a paisagem empoeirada.
No alto de uma colina surge a fortaleza de Jaisalmer, soberana e solitária, jóia de filigrana dourada: descrita pelos antigos viajantes como uma obra de anjos, fadas e demónios, ela emerge no horizonte como uma miragem reluzente. O forte efeito da monocromia da pedra acentua os reflexos do sol, rendendo à grandiloquente Jaisalmer o título de Cidade Dourada.
O grande sol indiano baixa sobre a fortaleza que vai mudando de cor conforme as sombras invadem os céus. Um mendigo toca uma cítara desafinada. Cessa a melodia e arrasta-se pela areia, carregando consigo dois coutos no lugar dos membros inferiores. Sobra no céu o risco de um avião militar, fazendo lembrar a proximidade da fronteira com o Paquistão; na terra, sobeja o rasto de um par de pernas inexistentes…
O passeio saracoteia-se por entre os cenotáfios dos Maharawals, arquitetura mortuária feita de cor da areia que encerra lamentos que o tempo não calou, e o lago Gadisagar, reservatório da água das chuvas ladeado por ghats– escadas à beira lago – de uma ilusória cinematografia.
O sol desce quando visitamos a pérola da cidade: o seu forte, o ponto de passagem obrigatório da rota de caravanas de camelos e onde ainda se respira uma atmosfera medieva que o borbulhar vigoroso do comércio não apagou. Vendedores estendem sobre qualquer superfície disponível os seus tecidos bordados e as suas coloridas marionetas. Um grupo de homens descarrega sacas de uma carroça ao som de uma verborreia inverosímil, enquanto as vacas se passeiam indiferentes aos pregões. Das jalis– janelas rendilhadas a pedra – as mulheres podiam apreciar a vida na rua sem serem vistas, filtrando os seus rostos de deusas do harém, num mundo recentemente perdido mas já meio esquecido.
Desço a rampa deste romance medieval, espelho biselado de uma beleza onírica inventada. No instante em que o conjunto se abafa numa neblina violácea, acende-se na minha cabeça a frase de Alberto Moravia: “Eu não sei o que é a Índia. Sinto-a, é tudo.”
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