Fugas - dicas dos leitores

O silêncio das areias

Por José Alberto Santos

Há uns anos o tempo encontrou-me no Egipto. Na cidade de Assuão, na região da Núbia. Era o dia 19 de Agosto de 2005.

Já caía a tarde. A brisa do Nilo passava a sua mão meiga pelo meu rosto. Ra ainda se anunciava em todo o seu esplendor. Eram sensivelmente 18h. Depois de nos banharmos nas águas refrescantes do Nilo, Mohamed perguntou-nos se estávamos dispostos a dar um passeio de camelo, pelo deserto, até uma aldeia núbia.

Mohamed Wabadan, guia turístico e ex-professor de egiptologia, no Egipto, era o nosso líder “espiritual”.

Um “faraó” afável, educado, correcto e uma pessoa aberta a todos aqueles que com ele partilhassem a curiosidade pelo Antigo Egipto.

Andar de camelo?

Apreensão foi, à primeira vista, a sensação que experimentámos. Passear pelo deserto em cima de um mamífero roedor, com meia tonelada de peso, dois metros de altura por três de comprimento não é propriamente a mesma coisa que fazer um passeio a pé pelo parque. Depois de a poeira assentar, surgiu a euforia.

Ainda com o Nilo colado à pele dirigimo-nos até uma caravana de cameleiros que, “estrategicamente”, antes fora colocada no local onde nos purificámos nas águas do rio. Camelo para ti, camelo para mim e aí vamos nós. Agarrámo-nos às bossas do animal, que por sinal eram firmes e grandes, e subimos para as suas costas. Alguns elementos do grupo, no qual estava a minha mulher, preferiram seguir-nos de faluca, pelo Nilo abaixo, até à dita aldeia.

O passeio pelo deserto começou. O nosso herbívoro amigo, caminhando a duas velocidades, devagar e devagarinho, lá iniciou a sua marcha desafiando as areias, o sol e a alta temperatura. Para alguns foi uma simples hora. Para mim... uma eternidade. Em cima da rahla, a sela do camelo, levanto-me, sento-me, levanto-me, sento-me... sento-me...

À medida que avançamos até à aldeia Núbia, junto ao Nilo, contra a corrente e a favor do vento, vai pairando sobre nós um verdadeiro silêncio sagrado. À nossa esquerda elevações dunares, bem arredondadas, curvam-se à nossa passagem. À direita o Nilo. Há como que uma aura especial. Um verdadeiro cenário de filmes.

Continuamos a andar. Ninguém se queixa. Numa curva da estrada o Nilo está a uns meros palmos do nosso camelo. Uma gota de água teimosa desponta no canto meu olho. O Nilo sorri para mim. Há, à nossa volta, um verdadeiro silêncio. No deserto o silêncio tem uma força que nos embriaga. Há como que um sentimento inexplicável que fica alojado no fundo do nosso coração.

Uma eternidade depois, tudo começa com um olhar. Um simples vislumbre que se transforma em desejo. O deserto anuncia, com pompa e circunstância, uma densa aldeia núbia. Uma aparição que em nada perturba a harmonia da paisagem.

Mohamed recebe-nos com um sorriso e um entusiasmo que vale por todos nós. Com um sorriso, do tamanho do Nilo, pergunta-nos se conhecemos o Sabry.

Sabry?

Sim, aquele futebolista egípcio que jogou há uns anos em Portugal. No Benfica. Lembram-se? -, diz-nos Mohamed.

Pois esta aldeia é a sua terra natal. Foi aqui que ele nasceu.

Entramos aldeia adentro. Há uma serenidade que nunca dorme. Uma perfeita comunhão entre a natureza e o homem. Deus de certeza que passou por aqui. Na aldeia núbia não havia luxo nem ostentações. Só se ouvia o palpitar de corações. E onde palpitam corações palpita a vida.

Paramos para descansar do passeio de camelo. Mohamed fala-nos da história do Núbia. Sentamo-nos para beber um chá quente de menta. Ou um chá refrescante de karkadé. Estou, enfim, em paz comigo mesmo. Oiço Mohamed falar daquilo que por aqui ainda continua a existir e de que todos nós somos feitos: tradição.

Pearl S. Buck, um grande escritor, disse em tempos que muitas pessoas perdem as pequenas alegrias enquanto aguardam pela grande felicidade.Este passeio que aqui vos conto foi uma das minhas pequenas alegrias, que tive a sorte de poder partilhar com aqueles que mais amo. Que são, no final de contas, a minha grande felicidade.

(Dedicado a Mohamed Wabadan)

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