Fugas - dicas dos leitores

Andorra, a fria

Por Maria João Castro

O ar frio e vivificante acompanha-nos quando nos aproximamos do pequeno país europeu localizado na cordilheira pirenaica, entre o nordeste da Espanha e o sudoeste da França.

A sonolência da noite invernosa entorpece o caminho de La Seu d’Uregell, onde tomamos a direção de Andorra la Vella, à qual chegamos já perto da meia-noite de 25 de Dezembro.

O termómetro marca dois graus negativos e a cidade já dorme quando procuramos um hotel. O funcionário da recepção levanta as sobrancelhas numa interrogativa. No vestíbulo, paredes forradas a damasco azul, sendo iluminadas pelas velas de um candelabro prateado. Um charuto incandescente repousa no cinzeiro de pé; as volutas de fumo acompanham a trémula melodia de jazz. Sobre a mesa, um flute de champanhe meio vazio já não espera o dono, abandonando-se às gotas de humidade que enleiam o cristal.

Um leve odor adocicado agarra-se ao casaco e acompanha-me até ao quarto. Um hóspede esmaga o cigarro e levanta-se, ausente. Anda de um lado para o outro com as mãos escondidas debaixo das axilas. Depois, torna-se a sentar, escorregando pelo sofá. Cruza os braços e as pernas, meditabundo, enquanto o céu forrado a cetim azul-escuro oculta o desfecho de uma noite improvável. A cidade, um manto florescente de luzes, repousa no fundo do abismo andorrano.

O dia rompe sob o orvalho da manhã, um pouco titubeante. O céu boceja quando abandono o aposento hoteleiro, deixando para trás um quadro que se assemelha a Cama Desfeita, de Eugéne Delacroix.

O destino é Pas de la Casa. Pirenéus espanhóis, de escarpas rochosas e picos de montanha desaferrolham-se na beleza nívea. Um fidalgo, carregado de anos e atormentado no ânimo, lança-nos um olhar inquisitivo quando se cruza connosco na estrada. Depois, afasta-se sem atropelos nem sobressaltos. Percorrer estas cadeias montanhosas, de sensual contorno, é aflorar invisíveis elos que vão gerando pensamentos vagabundos.

A entrada no túnel para França retira-me da letargia momentânea. As poderosas forças telúricas encontram-se camufladas pelos paredões de betão do corredor dentro da serrania, como se se anichassem envergonhadas.

Aproveito a claridade para redesenhar o mapa do presente que se mostra tão nítido quanto a límpida manhã de Inverno. O som do cravo de Bach esvai a manhã por entre a cortina branca da paisagem. 

Horas depois reentramos em Espanha. O automóvel pára à frente de um botequim de portadas escaqueiradas e de onde saem aromas a petiscos acabados de cozinhar. Sento-me numa mesa no passeio e peço um salpicón de mariscos, uma salada fria composta por uma mistura de mariscos e coberta por um molho de vinagreta. O crepúsculo cor de malva convida a saborear umas almôndegas servidas com um molho espesso de tomate e pimentos padron. Do rádio, desprende-se um “olé” de bailaora: pressinto-lhe o revirar de pulsos e a libertação do polegar das castanholas. Por fim, e quando a noite ameaça cobrir o panorama, ligo o motor e retomo a estrada. Uma melodia suave desprende o poema de Pablo Neruda, que remata a jornada:

Por eso tengo que volver a tantos sitios para encontrarme conmigo sin más familia que el camino.”

--%>