Fugas - dicas dos leitores

Buçaco, a melíflua do Palace

Por Maria João Castro

"Bussaco", de Susanne Chantal, conta que os frades Carmelitas Descalços foram os primeiros habitantes do lugar, fundando aqui um ermitério num local doado por D. João Manuel, bispo de Coimbra.

A primeira pedra do convento foi lançada em 1628 e, gradualmente, o prelado foi acrescentando flora à mata mas já era tal a sua fama que o papa Urbano VIII decretou uma sentença de excomunhão contra quem violasse a clausura dos que ali viviam e tentasse destruir os arvoredos. Com a ajuda de benfeitores, os eremitas conseguiram o dinheiro suficiente para murar o bosque, construir uma via-sacra e manter o espaço como um reduto asceta.

Percorro o interior do palácio que soçobra de História, mergulhado nos mestres portugueses da época: azulejos de Jorge Colaço evocando Os Lusíadas, os Autos de Gil Vicente e a Guerra Peninsular, as esculturas de António Gonçalves e de Costa Mota, as telas de João Vaz, os frescos de António Ramalho e as pinturas de Carlos Reis. O mobiliário assenta em tapeçarias pisadas de anos, em peças indo-portuguesas e chinesas, esculpidas a partir das madeiras exóticas das províncias ultramarinas.

Enquanto aguardo a chave do quarto, aprendo que o projecto do edifício onde me encontro foi entregue ao arquitecto italiano Luigi Manini, cenógrafo do teatro de S. Carlos e que havia sido trazido pela mão da rainha D. Maria Pia de Saboia, esposa do rei D. Luís I. As obras iniciaram-se em 1888 e contaram com a participação de inúmeros outros artistas que, dentro do estilo neo-manuelino do conjunto edificado, contrasta com a austera severidade monacal do antigo convento.

A chave entra na fechadura. Rodo o manípulo e a porta dá de si, gemendo na noite. O candeeiro do tecto lacrimeja lágrimas de cristal espalhando uma luz beata. Lá fora, farrapos de chuva pingam das gárgulas de pedra escura. A mata adensa-se de nevoeiro. Envoltas em heras, os troncos do arvoredo de grande porte assemelham-se a sentinelas vetustas. A floresta secular deixa antever uma riqueza e variedade de espécies que abanam as suas ramagens numa dança improvisada.

Atravesso o corredor alcatifado detendo-me nas fotografias que cobrem o friso das paredes laterais: imagens paradas no tempo através do clique de um artista, figuras espartilhadas em vestes de outras épocas, elegantes na sua voluptuosidade de Belle Époque. No final do longo corredor bordejado de alcovas semifechadas, vislumbra-se parte das traseiras do antigo convento. Datam de meados do século XIX os primeiros planos para transformar o antigo convento num pavilhão real para a rainha D. Maria Pia de Saboia, mulher de D. Luís I. Contudo, e à medida que o ideário republicano se difundia e o regime monárquico perdia prestígio, houve que alterar o propósito do projecto, optando-se por erguer um hotel. Parte do convento foi destruído e já depois de o Palace erguido e inaugurado, um pavilhão real anexo foi edificado, ficando conhecido como a Casa dos Brasões.

O século XX, no seu pleno triunfo do turismo, confirmou uma clientela regular de estrangeiros que o consagrou como local de eleição de grande prestígio.

Regresso atentando no Anjo da Vitória que empunha o escudo nacional, numa alegoria desusada. Será ele o guardião do Palace?

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