Fugas - dicas dos leitores

Alexander Demianchuk/Reuters

Mariinski, uma jóia em São Petersburgo

Por Maria João Castro

O início de mais uma noite branca trazia uma aragem quente que cheirava a Verão. Sob o céu nocturno de São Petersburgo, uma lua cor de prata iluminava o lanche-jantar que acontece no Teatro Café

Na mesa do lado senta-se uma mulher madura com porte de bailarina que degusta uma salada colorida.

Algum tempo depois, e após ter degustado uma lauta refeição, despeço-me da antiga professora de dança e atravesso a rua, entrando no mítico Mariinski, o mesmo de onde saíram as primeiras estrelas dos ballets russes. Na verdade, a companhia de Serge Diaghilev, enquanto grande desfile artístico do século XX, foi a catalisadora do estreitamento da relação entre a dança e as artes plásticas. Mais tarde tornou-se num modelo mundialmente reproduzido, que reconfiguraria todo o cenário plástico e estético da dança mundial. É a ambiência desses anos dourados que procuro no foyer e nos corredores do teatro; a aura de uma época fabulosa mas, por incapacidade ou desatenção, não vislumbro quaisquer resquícios e apenas afloro, por instantes, um certo élan quando abro a porta do camarote indicado no bilhete: Belle Étage.

Enquanto o espectáculo decorria, observei a orquestra e o reflexo das luzes nos músicos compenetrados, de olhar poisado sobre as pautas. As sombras avultavam nas varandas dos balcões e faziam ressair o flavescente das esculturas amadeiradas. A negrura provocada pela ausência de luz colocava em evidência o rendilhado da sumptuosa decoração do teatro. A luz do palco reflectia-se no cristal dos lustres, que desenhava vultos inquietantes enquanto, no palco, a pantomina de La Bohème, de Puccini, finalizava com a descida da belíssima cortina de cena do Mariinski. Era a altura para, entre o verde e o dourado-velho da sala, se esfumarem vultos apressados pelos labirínticos corredores e camarins olvidados, onde talvez ainda vagueasse o espírito de Nijinsky, Fokine, Kschessinska e Lupokova, bailarinos únicos de uma história sem igual…

Decido regressar ao hotel a pé. Estugo o passo ao ver uma montra cujo letreiro indicava uma loja de antiguidades. Havia um tutu na montra, bordado à moda dos de antigamente, cheio de pedrarias e penas. Desenha-se o sorriso de um objecto desejado, sinto-o: estava a ser provocada, na verdade, a enamorar-me; e isso era um sintoma antigo. O que me deixou pregada ao chão foi a elegância com que a veste se encontrava pendurada no manequim desarticulado.

O encontrão de um vulto andarilho fez-me retomar o caminho, mas a distância que ainda faltava percorrer levou-me a apanhar um autocarro já o relógio marcava um novo dia. O céu mantinha uma luminosidade púrpura, prolongando-se em mais uma noite branca…

Quando arrumei o corpo na cama, o sono demorou a chegar. A mente divagava por entre os corredores do Mariinski, também chamado de Kirov durante a vigência da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas… um duende irrequieto redemoinha por entre o sono e o sonho dançando apenas porque acredita que através da dança e da arte cada um pode ser mais autêntico e consequentemente mais feliz; algo incrível de beleza, intensidade, consciência, poesia e verdade.

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