Fugas - dicas dos leitores

A pé pelas ruas de Praga

Por José Alberto Santos

República Checa, Praga, a cidade de Franz Kafka, 6h15 de 15 de Agosto de 2014. Acordo. A Ana e a Andreia ainda estão embaladas nos braços de Morfeu. Abro as duas portadas de uma janela situada num quarto do 3.º andar do Hotel Victoria, no bairro dormitório do Žižkov.

É Verão mas o dia apresenta-se nublado, cinzento e ameaçando chuva. Lá fora, na rua, só se ouve o tram descendo rápido, como um salteador, a Seifertova até à paragem de Husinecká.

Enquanto o Žižkov desperta lentamente, a frescura da manhã acaricia-me o rosto, despertando-me dum torpor nocturno chamado absinto. O sol vê-me mas eu não o vejo. Há cenários e situações que nos despertam ilusões e sonhos mil. Mas… testemunhá-los ao vivo e a cores? Não consigo imaginar, por exemplo, quais seriam os meus sentimentos ao acordar em Praga na Primavera de 1968, na então Checoslováquia. (O absinto é tramado, malta.)

Depois de saborearmos as cores de um lauto pequeno-almoço, a bater as 8h15 saímos para uma descoberta da deslumbrante Praga. A pé – porque as cidades são como um livro que se deve ler com os pés. Apanhamos o tram 9 na Husinecká e descemos na estação do metro de Mustek-A, já dentro do bairro de Staré Mesto, a Cidade Velha de Praga, onde iniciaremos a nossa caminhada citadina. Mas, como todo o bom português que se preze, há que cumprir com o ritual matinal do café expresso da manhã. Certa vez, em viagem pela Turquia, uma guia disse-me que os portugueses eram o único povo no mundo que faziam paragens técnicas para beber um café. Por sorte, mesmo ali ao lado, está o Costa Coffee, na Václavské námestí (Praça Venceslau).

Depois da “paragem técnica” voltamos novamente à estação de Mustek-A, também ela situada na Praça Venceslau. Apanhamos o metro e descemos, ao bater das nove, em Staromestská. Minutos e passos mais tarde e eis-nos na Avenida Križovnická. Uma carrada de fotos mais tarde e chegamos à estátua de Charles IV, virada de frente para a Torre da Ponte da Cidade Velha (Staromestská mostecká vež).

E aqui, em frente a estes dois monumentos, começa nossa a verdadeira caminhada da manhã: a travessia da Ponte Carlos, Karluv most no idioma checo. Um verdadeiro monumento único da arquitectura gótica protegida pela UNESCO. A dita ponte atravessa o rio Moldava (Vltava em checo) que, mais do que um rio, é uma enorme massa de água fresca, entranhada na pele como uma tatuagem, e que serpenteia pela cidade de Praga. Nasce na região montanhosa da Boémia e é um confluente do rio Elba.

Voltando à ponte, de acordo com o guia, ela tem para aí meio quilómetro de comprimento por dez metros de largura e é apoiada em dezasseis arcos. Mais do que isso, mantém ao longo dos tempos uma relação privilegiada com uma enorme panóplia de santos e santidades. Está decorada em todo o seu comprimento por cerca de 30 estátuas de santos e pessoas veneradas pelos cidadãos de Praga e da República Checa.

E são estas estátuas, em estilo barroco, que dão todo o sentido à fama que esta ponte tem no mundo. As sombras metálicas e telúricas destas estátuas podem ser vistas em milhares de postais ilustrados. Mas, decepção das decepções: estas não são as estátuas originais. Para prevenir a deterioração das estátuas, da intempérie e de algum vandalismo turístico, em 1965 as estátuas originais foram trasladadas para o Museu Nacional. Quem as quiser ver tem de atravessar outra “ponte”. Mas isso não invalida, em nada, a sensação de atravessar tão única.

Mas o encanto do passeio não é apenas este. A paisagem envolvente é deslumbrante, devido sobretudo à beleza exterior do Castelo de Praga, que domina a capital na margem esquerda do Moldava no cimo da colina de Hradcany, local onde foi fundada a cidade. Mais para a direita vislumbram-se ainda as torres da maior igreja jesuíta de Praga: a igreja de S. Nicolau Lesser. Os vendedores de recordações começam a instalar as suas bancas. No ar ouve-se a sinfonia n.º 9 de Devorak a julgar pelo CD na mão do vendedor. Antoni Devorak, célebre compositor e filho dilecto da Boémia, está para os checos como Mozart está para os austríacos.

Eis-nos chegados à estátua de São João Nepomuceno, onde há um ritual a executar. Reza a história que corria o ano de 1383 e João Nepomuceno detinha o cargo clerical de confessor oficial da rainha Sofia, esposa de Venceslau IV, rei da Boémia. Certo dia, ao recusar revelar ao rei os conteúdos das confissões da rainha, este condenou-o à morte, mandando o seu corpo ao rio Moldava neste preciso local, mesmo à beira da ponte e onde se encontra a estátua. Junto à estátua está uma cruz de latão com cinco estrelas e reza a lenda que quem tocar com as mãos nela trará de volta para casa um pouco da sorte de Praga. Pelo sim pelo não, tocámos os três lá com as mãos. A Ana, a Andreia e depois eu. Não acreditamos em bruxas, mas que as há…lá isso há.

Dez horas da manhã, chegamos ao fim da ponte, mesmo junto à placa metálica que diz “Karluv most”. Mesmo perto das duas torres góticas de Malostranské mostecké vež. Foi para aí meia hora a pé a fazer a coisa. O sol aquece, a sede desperta. A canseira é mais que muita. E a fome, leia-se gula, a julgar pelo meu estômago, está desvairada. Talvez devido ao delicioso cheiro a bolinhos que vem da padaria Krusta, situada no fim da ponte, do lado direito, mesmo ao lado do Hotel Restaurace U Tri Pštrosu. Se não deram com ele pela morada dão de certeza com ele pelo cheirinho que paira no ar a trdlo, o delicioso pão doce das ruas de Praga.

Sentamo-nos à sombra de um toldo, a degustar deliciosos trdlo com misturas doces e salgadas em simultâneo, empurrados pela goela abaixo com um não menos delicioso cappuccino. O dolce far niente tem destes efeitos em mim: às vezes preciso de não fazer nada para conseguir fazer tudo. É que eu tenho de colocar as ideias por escrito no meu diário. Se possível com um trdlo

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