Fugas - dicas dos leitores

Nuno Alexandre Mendes

Cavaleiro, uma tentativa de aldeia

Por Luís Robalo

Uma aldeia que se chama Cavaleiro, abaixo para quem desce ao Sul, de Almograve: uma rotunda com uma rua principal a desembocar numa praia vaidosa, como todas as do litoral alentejano.

“Estás bem apresentada, a boca toda a ensinar os dentes!”

“Casaste bem ontem à noite, não?”

“O ti Quim também parece que dormiu pouco mas não deve ter sido da raladeira!”

“Esqueci-me dos comprimidos.”

“E o que vai ser?”

“Se me apuseres um cheirinho de licor Beirão, c’o café ficava bem!”

Hoje é dia de inauguração, os da Junta todos em nervoseira: os vendedores de camionetas ambulantes de peixe e de verduras e de batas com cores garridas têm um novo espaço para feirarem, devidamente assinalado com uma tabuleta minúscula, mas garbosa, que ainda por cima não assinala bem. Correções de sinalética autárquica a serem levadas a Assembleia.

No ajuntamento de poucas casas de Cavaleiro,a caminho do cabo Sardão, está o bar da Adélia, o único spot com conexão ao ciber-espaço, onde se misturam as conversas de gente normal com os alienígenas, deprimidos de tanto silêncio e ávidos de consultarem a “rede”.

Cá fora, e porque é Verão e faz calor, os velhos esparramam-se à porta das suas casas, sentados em cadeiras - quedos e mudos, até que alguém passe por eles. Em passando, descontrolam-se em cumprimentos, com olhos de grande curiosidade. Meia dúzia de forasteiros num dia é muito movimento, mas é uma animação que vale por todo o ano.

Cavaleiro é uma tentativa de aldeia, mesmo assim cosmopolita: tem dois emigrantes paquistaneses que trabalham nas estufas e duas alemãs fugidas do sufoco que vivem aqui sem que nunca lhes tenham visto sinais de prepotência.

Enquanto os homens da terra falam sobre nada e bebem, os orientais, sentados ao seu lado, não bebem e não se sabe se entendem as conversas. Em todo o caso, são gente da terra.

A senhora Maria e o senhor Francisco criam galinhas. Ele planta-lhes um campo de salsa para elas comerem e ficarem já temperadas.

Encomendamos duas para um churrasco. Ela estende um lençol branco sobre o chão, uma tábua de madeira e diz que vai à procura pela machadinha. Aparece com um machadão e, agachada, curvada e já muito velha, vai partindo lentamente a carne em quadradinhos. Quanto mais pequenos, mais fixa a audiência, que um cortar assim é para dar tempo à conversa, e para conversar, mesmo que num monólogo,é preciso que haja presença de gente.

“O meu Francisco diz que eu sou a esgravatadinha, como o juízo das galinhas.”

“O juízo das galinhas, senhora Maria, onde é que isso fica?”

“Os senhores estão a ver esta risca aqui, no cimo da cabeça? É onde está o juízo. Isto e as patas, que por estarem sempre na terra é onde absorvem mais os alimentos, são as partes mais saborosas.”

Depois de Cavaleiro é o fim do mundo, isto porque se diz que os faróis estão sempre colocados no fim do mundo. Por isso mesmo: para serem a luz intermitente que encaminha os extraviados.

Um farol e um campo de futebol pendurados numa falésia. O campo de futebol está num plano inclinado (sorte para os que jogam a descer) e tem duas choupanas em madeira para resguardo dos jogadores em dias de canícula, se é que alguma vez se disputou uma partida nesse local.

Se aconteceu e foi no final de um dia de Verão, os espectadores indecisos na decisão de porem os olhos no acontecimento ou deslumbrarem-se com um céu carregado de estrelas, não ficaram com notícia de que nesse campo tenha ocorrido uma partida de futebol, porque só olharam para as alturas.

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