De tanto convívio com a natureza, sorveram do ambiente o seu feitio complexo, ensimesmado. Não deixam a porta aberta para que qualquer um entre, mas fica encostada quando saem de casa. Não são seres que amem as solidões, mas o confinamento e a escassez de almas encerra-os, convite quase forçado a sentarem-se no escano em frente ao fogo.
Em passados antigos repetindo-se nos recentíssimos, foram poucos os que não se refugiaram no estrangeiro ou nas grandes cidades do litoral. Fica quem não se despega da terra: impossibilidades pessoais ou físicas. Fica quem tem os magnetismos alterados, os que apresentam raízes nos pés, que se metem a crescer pelas profundezas da terra.
Antes, era quase um dia para chegar a Trás-os-Montes, pedia-se uma mentalização prévia para a viagem, curvas e mais curvas, enjoos, estradas más, retratos bonitos a passarem em flecha à frente dos olhos, como se as janelas do carro fossem ecrãs de cinema. O automobilista, sem espaço de memória para os arquivar todos. A fazer de fundo para estes cenários, uma paleta de verdes e castanhos acobreados, se é Outono, a estação que rivaliza de cores com a Primavera; e um catálogo de cinzentos se é Inverno, a estação que rivaliza de tristeza com o fim.
Agora é tudo rápido, o país intersectou-se de linhas rectas traçadas a alcatrão. O que se poupa na velocidade com que se chega, subtrai-se no prazer da viagem, insonsa do seu melhor condimento, a aventura — apercebermo-nos das alterações da paisagem, as cambiantes subtis ou não da luz que se projecta nos sítios, as meteorologias —, presos no cinto de segurança e na previsibilidade enfadonha de chegar a um destino sem memória de acontecimentos interessantes assinaláveis no lapso de tempo decorrido entre a partida e a chegada. É assim que as coisas agora são.
Adiante, que vamos para Carrazedo de Montenegro, a capital da castanha. Tem que se ser a capital de qualquer coisa, aparecer no ranking, para não se transfigurar em fantasma, um risco elevado nas geografias interiores quase despidas de vida palpitante.
Carrazedo de Montenegro poisa-se nas alturas do concelho de Valpaços — oitocentos metros — e olha para este de alto para baixo. É uma vila aberta aos brilhos pristinos do céu, mais próxima das alturas, o que conta e muito para a purificação dos ares e das almas, que é tudo boa gente.
Especula-se sobre a etimologia do nome. Há quem diga que Carrazedo vem de carrasco, abundância de carrascos (uma espécie de carvalho, aqui há muitos). Montenegro vem da escuridão da vegetação da serra da Padrela, o negro monte que lhe faz sombra.
Nos dias de hoje, Carrazedo é uma vila limpa e pintada de cores frescas, claras. Tem uma igreja matriz quase majestosa, uma pequena catedral, que do interior dizem os vizinhos não ser a mais rica — picardias locais. Foi construída no século XVI e remodelada no século. XVIII, neo-clássica com acréscimos do barroco.
Venera-se São Nicolau de Mira, o Taumaturgo. Santo padroeiro da Rússia, da Grécia, da Noruega — e de Carrazedo de Montenegro. Este homem do século III, milagreiro, ganhou fama pela caridade com as crianças e tornou-se um símbolo ligado directamente ao nascimento de Jesus (e à época natalícia: Pai Natal, Santa Claus, é este senhor).
Espreguiça-se a vila por um jardim contemporâneo, já não se usam árvores nestes espaços, só relvas e patamares de pedraria e canteiros rasos com arbustos. À noite, deserta de seres de qualquer espécie — descontando os cães vagabundos que cumprem penas de outras vidas —, luzes modernamente estudadas nos candeeiros de pé alto criam o ambiente que ninguém vê.
A feira da castanha na sua capital é uma festa. No pavilhão das actividades económicas apresentam-se os stands sérios: as instituições, os produtores, os comeres. À porta do pavilhão estacionam as “forças vivas” da região, no ponto estratégico onde se vê quem vem, quem falta, se cumprimenta e se ganham fichas de simpatia, se passam recadinhos com ditos mais ou menos sinceros. Cá fora, no jardim, os feirantes profissionais de tenda montada oferecem o que é de costume: as trusses, as meias, os fatos de treino, as camisolas com estampados de tigresas e outros felinos. Farturas é com fartura, não se resiste ao trocadilho, tanta oferta num espaço tão curto de gente.
A Castmonte (assim se chama esta feira) celebra o tesouro da região, e é a oportunidade (voltamos ao princípio da conversa) de a terra aparecer no mapa das terras que ainda não feneceram. A televisão do Estado marcou presença, programa de domingo, com as pimbalhices habituais e as ofertas de dinheiro e carros, pagos e bem pagos nas chamadas, ingénuas e às carradas, dos espectadores ávidos de virem a ser os felizes proprietários de uma viatura para a qual não têm dinheiro para a gasolina, a manutenção, o imposto de circulação e o seguro.
Não há dúvida que Carrazedo de Montenegro é a capital da castanha, que a melhor é a Judia, mas se o cliente quiser e for conhecedor também pode levar a Longal, a Lada, ou mesmo a Cota, nomes que se aprendem e são bons nomes.
O concelho não tem ainda uma oferta turística diversificada. Umas poucas unidades de turismo rural e residenciais paradas num tempo próprio: desde o dia em que abriram portas. Aos poderes autárquicos, em esforço de criatividade, cabe-lhes divulgar e trazer turistas, a tal diplomacia económica. É um trabalho que pede ideias fortes, bem ilustradas, que atraiam e cativem as pessoas. Bons argumentos que façam os turistas escolherem esta terra em vez de outra.
Nós, chegados a gente de cá, voltamos amiúde, e pelas noites, sentados no mesmo escano do início desta crónica, crepitamos as castanhas na lareira, alouramos as pinheiras (cogumelos selvagens) com sal e uma pitada de azeite, cozinhadas na brasa. O vinho, é denso, escuro, saboroso e telúrico.
Houvesse hospitais e boas escolas e era na terra da castanha que ficávamos, a ganhar cores e enrijar as energias, que na grande cidade só se ganham arrelias e catarros.