Um longo balcão de madeira acolhia cerca de dez funcionários impecavelmente fardados. Era necessário adquirir um visto de entrada no país. O passaporte entregava-se ao primeiro funcionário, que verificava a sua autenticidade, passando-o logo para o segundo funcionário.
Assim, ao longo de dez minutos, fomos assistindo, com atenção, à pequena viagem do passaporte português que, de mão em mão, percorreu o longo balcão, tendo cada funcionário aduaneiro efectuado uma operação relacionada com a entrada neste longínquo país asiático. Um preparava o visto, outro colava, outro assinava, outro recebia os trinta dólares, outro verificava, outro passava o recibo, sendo que todos desempenhavam a sua tarefa com eficácia e rapidez. Este curioso balcão foi a última etapa para entrar no Camboja.
Local de grandiosas civilizações milenares, desconhecidas da esmagadora maioria dos ocidentais, o Camboja, situado entre a Tailândia e o Vietname, foi sempre alvo da cobiça e da disputa destes dois poderosos vizinhos. A história do Camboja foi, em grande parte, uma história de guerras, destruição e sofrimento, quase até aos finais do século XX.
Há mais de mil anos, na zona de Siem Reap, floresciam grandiosas cidades e templos, construídos em pedra, em territórios roubados à floresta e à selva tropical. Foi o período áureo da brilhante civilização khmer, etnia dominante no Camboja. A religião hindu, numa primeira fase, seguida da religião budista, foi responsável pela construção de deslumbrantes, vastos e misteriosos templos de pedra, aproximando os deuses dos homens, dos seus medos e dos seus anseios.
Um embaixador chinês que residiu em Angkor, capital do Camboja em 1296, descreveu a cidade e os seus templos como esplendorosos.
Em 1431, o rei terá abandonado a cidade para fundar uma nova capital, situada bastante mais a sul, numa zona mais próxima do mar, denominada Phnom Penh.
No século XVI, foram vários os exploradores, aventureiros e missionários portugueses que se embrenharam pelo interior do Camboja. Entre 1858 e 1861, o explorador francês Henri Mouhot efectuou quatro viagens pelo interior da Indochina, tendo visitado as ruínas da antiga capital do Camboja, Angkor, abandonadas há mais de quatrocentos anos.
Em 2015, a floresta tropical continua no seu lento processo de recuperação do espaço que lhe pertence mas que lhe foi, injustamente, retirado há mais de mil anos. Hoje, a vegetação luxuriante, comandada por gigantescas árvores, vai-se apoderando das cidades e dos templos de pedra, abandonados há séculos pelos seres humanos, neste caso pelo povo khmer. A cor verde vai-se impondo e sobrepondo às cores vermelha e cinzenta das toneladas de pedras que, encostadas umas às outras, outrora imperavam narcisicamente nessas antigas cidades, rodeadas pela floresta tropical, mantida à distância pela acção castradora do ser humano.
Em 2015, no interior do Camboja alterou-se a relação de forças entre o homem e a natureza. A floresta recupera o seu lugar. A floresta reivindica o espaço que lhe pertence. As árvores, em luta com as paredes dos templos, dos muros e das casas, voltam a ocupar o seu lugar.
Deambulando pela cidade perdida de Angkor, observam-se os arcaicos templos hinduístas e budistas a serem devorados por enormes árvores, autorizadas pelos deuses no seu regresso a casa. Muros derrubados, templos quebrados, casas esventradas por gigantescas raízes, imparáveis no seu progresso, alimentadas pelas chuvas tropicais e diluviais. Ruínas por toda a parte, muitos templos e habitações já só ostentam algumas últimas pedras que aguardam o derrube final. A derrota misericordiosa, ao fim de tantos séculos de luta. Janelas e portas bloqueadas por imponentes raízes, num abraço mortal que antecede o inevitável desmoronamento.
As ruínas de Angkor deslumbram e fascinam. Do alto de muitas torres, gigantescas faces de pedra, eventualmente representativas de Buda, miram o avanço da floresta perante a impotência da extraordinária arquitectura. Sem uma nova intervenção humana, será uma questão de tempo até a natureza recuperar, totalmente, o que lhe foi sonegado, reduzindo à insignificância uma importante e milenar civilização asiática.
Assim se constata, mais uma vez, a perenidade da efémera condição humana perante a natureza intemporal. Nem os deuses de Angkor conseguiram evitar que a frágil e fugaz humanidade sucumbisse perante a natureza eterna. A vida humana é tão breve e passageira que nem se dá conta da sua insignificância perante as leis do universo.
As enormes e serenas caras de pedra, esculpidas nas inúmeras torres que ainda sobrevivem a este holocausto, apesar de mudas, parecem querer transmitir-nos todos estes ensinamentos acerca da intrincada condição humana, em permanente e por vezes obscuro processo de aprendizagem. No Camboja ou em qualquer outra parte do mundo.