Sorrio incrédula, enquanto outra questão me assalta logo em seguida. Ao observar os azulejos com padrões coloridos, que adornam os prédios centenários, reparo nalguns quadrados em falta: “Qual o castigo para os responsáveis por estes saques de valor inestimável?”. Nova réplica, desta vez em forma de arte urbana, na Rua do Marquês de Ponte de Lima: o desenho de um prisioneiro infeliz atrás das grades.
Coincidência? Se dúvidas persistem, de que a Mouraria tenta comunicar comigo, elas dissipam-se quando passo na Rua das Farinhas. O recado “Tem uma cor bonita”, escrevinhado numa parede, faz-me reparar nos festões e harmónios de cores garridas que adornam as fachadas das casas brancas, a relembrar o espírito dos Santos Populares.
Rendo-me às evidências. Na verdade, todos nós temos o dom de as ouvir. As grandes cidades. Elas falam connosco, mas perdidos na azáfama do dia-a-dia ignoramos o que elas têm a dizer. Contudo, se experimentarmos ser turistas nos locais que julgamos conhecer, e os percorrermos com calma, aquilo que era imperceptível começa a ser audível.
Assim, demoro-me no Beco das Farinhas e escuto a história silenciosa dos residentes, imortalizados em pequenas fotografias a preto e branco dispostas nas frontarias das moradas: a dona Violeta à janela, o senhor Carlos com o fiel Dom Quixote latindo a seus pés, a dona Adelaide, a dona Georgete e o senhor António reunidos em amena cavaqueira.
Entro para tomar café na Leitaria Moderna, onde o ditado afixado “Por culpa de alguém não se fia a ninguém” não é sinónimo de falta de bondade: “É possível deixar uma bica, ou uma sopa, suspensas para quem mais precisa”, conta a dona Celeste atarefada atrás do balcão. A iniciativa nascida em Itália chegou ao bairro pela Associação Renovar a Mouraria e percebe-se o orgulho dos que aderem ao projecto, com o objectivo de “combater a pobreza envergonhada”.
Com estas últimas palavras em mente, caminho rumo ao Miradouro da Graça, e concluo que o maior perigo de não ouvirmos as grandes cidades é ignorarmos a voz dos que lá vivem e precisam da nossa ajuda.
Chego ao terraço panorâmico, enquanto o sol se põe por detrás da ponte 25 de Abril, espalhando o brilho do ouro pela cidade. Passo pela esplanada protegida pelos pinheiros e misturo-me com os transeuntes que observam a paisagem. Ao longe, no Castelo de São Jorge, distingo a silhueta de uma bandeira portuguesa que ondula orgulhosa. A um canto do pátio, o busto de Sophia de Mello Breyner perscruta o horizonte, absorto. “Em que pensas, Sophia?”. Gravada numa placa ao lado, a resposta descreve Lisboa de forma brilhante: “Quando atravesso — vinda do sul — o rio/ E a cidade a que chego abre-se como se do seu nome nascesse/ Abre-se e ergue-se em sua extensão nocturna/ Em seu longo luzir de azul e rio/ Em seu corpo amontoado de colinas”.
Recuo e entro na Igreja da Graça. Percorro com os olhos as esculturas das capelas, bem como os altares em talha dourada. Fito, com admiração, pequenos anjos que elevam às nuvens as suas orações no tecto pintado há 200 anos por Pedro Alexandrino de Carvalho.