“Contratamos um guia ou arriscamos e vamos sozinhos?”, pergunta-me Ali, um colega de hostel que me acompanha na visita ao Parque Nacional de Bako, no Bornéu. Decidimos não arriscar: o parque tem 16 trilhos que estão relativamente bem sinalizados, mas para quem, como nós, quer ver o máximo de fauna possível (especialmente, macacos proboscis) um guia é a opção mais acertada pois sabe identificar sons e outros sinais indicativos da presença de animais.
O plano é simples: apanhar um barco da vila de Kampung Bako até à reserva natural, e aí explorar o máximo possível até às 15h, altura de partida do último transporte. O guia informa-nos que o melhor será optar apenas por dois trilhos e, antes de nos aventurarmos por qualquer um, perscrutar primeiro a área circundante ao parque de campismo: “Os macacos costumam ir até lá na esperança de conseguir comida. Para além disso, a vegetação menos densa faz com que os localizemos mais facilmente.”
Quando desembarcamos, temos a sensação de ter chegado a um planeta distante: a mesma água que beija uma praia de areia branca orlada por uma selva luxuriante é também aquela que afoga lentamente um bando de árvores, cujos ramos nus se erguem para o céu na derradeira tentativa de sobrevivência.
O nosso orientador pede-nos para falarmos baixo de modo a que consiga concentrar-se nos sons da natureza e iniciamos a nossa caminhada em passo lento. Atento a tudo em seu redor, localiza passado breves instantes um macaco proboscis (também conhecido por macaco-narigudo) que se alimenta no cimo de uma árvore.
“É um macho e já bastante idoso! À medida que envelhecem a tonalidade do pêlo vai escurecendo.” Maravilhados, gastamos largos minutos a admirar o animal, que não se incomoda com a nossa presença e adormece após a sua refeição.
Pouco adiante somos brindados com a segunda surpresa do dia: ao ouvir alguma agitação nas árvores, detectamos um bando de macacos de folha prateada, com uma cria pendurada na barriga da progenitora. “O bebé deve ter cerca de três meses. Estão a ver como o seu pêlo laranja contrasta com o cinzento da mãe? É uma medida de protecção, porque os animais selvagens temem cores garridas!”. A explicação faz-me pensar como a natureza é inteligente.
Finalizada a ronda à zona de campismo preparamo-nos para deixar a área. Porém, ainda antes de inaugurarmos os trilhos, somos agraciados com mais alguns avistamentos: macacos-caranguejeiros (somos alertados para termos cuidado com os nossos pertences pois estes animais são muito afoitos), uma fêmea de javali-barbado acompanhada do respectivo filhote e uma víbora de Wagler completamente camuflada entre a folhagem cor de alface.
A entrada no primeiro trilho é uma experiência avassaladora: assim que nos embrenhamos na floresta tropical, o canto dos animais é entoado tão alto que julgo estar numa sala de cinema com o volume no máximo. O guia caminha cuidadosamente, evitando os braços de raízes que cobrem o chão e parecem querer agarrar os nossos pés, ao mesmo tempo que vai traduzindo com paciência a amálgama de sons que nos rodeiam: “Estão a ouvir este grito? É um macaco proboscis que está a alertar os restantes elementos do grupo da nossa presença! Os gritos das fêmeas são diferentes porque não são tão nasalados.”
A sua longa experiência na selva, que palmilha desde miúdo, permite-lhe não só responder às nossas questões, mas também ensinar-nos alguns dos segredos da antiga sabedoria malaia: canas que são transformadas em cestos, plantas com fins medicinais, bambus utilizados para fabricar zarabatanas, frutas utilizadas para manter longe os animais selvagens. De carácter calmo e com um conhecimento profundo da fauna circundante, sossega-nos quando nos assustamos com uma colmeia: “Essa espécie de abelhas é inofensiva!”
A presença de caranguejos eremitas que se escondem na sua concha assim que nos aproximamos anuncia uma mudança de cenário: a densa cortina de vegetação abre-se subitamente para dar lugar a uma praia que marca o final do primeiro itinerário. Paramos para descansar por breves instantes, e somos informados que iremos tomar um atalho no caminho de regresso, de modo a que fiquemos a conhecer mais um pouco do parque.
Assim, transpomos uma fenda estreita na rocha e ingressamos noutra dimensão: agora pisamos o solo tenro dos mangais, com longas cortinas de raízes aéreas, pertencentes a árvores que parecem tentar libertar-se do chão. A vegetação impede a erosão, actua como filtro, e ainda cria condições para albergar uma vasta biodiversidade: partilhamos o percurso com saltadores-do-lodo (peixes-anfíbios) que pulam ao nosso lado, caranguejos da cor do mar profundo e rochas cravejadas de cracas.
Absortos pela natureza surpreendente, não damos pelo passar do tempo, e rapidamente chegamos ao ponto de partida. As árvores nuas que marcaram o início do nosso passeio estão agora completamente à vista com a baixa da maré, e a sua simplicidade crua possui uma beleza libertadora.
Damos início à terceira etapa do dia: uma visita à floresta pantanosa. “O parque de Bako alberga praticamente todos os tipos de vegetação do Bornéu. Esta tem particularidades totalmente diferentes da que viram de manhã!”, informa o guia. Fico espantada ao tomar consciência de tamanha diversidade, naquela que é uma das reservas mais pequenas da região de Sarawak.
Fico a saber também que o solo esponjoso deste pântano impede a decomposição de matéria orgânica, que se acumula numa fofa cama de turfa. O resultado é um reservatório gigantesco de dióxido de carbono, que é aqui mantido num equilíbrio frágil: estima-se que a destruição deste habitat resulte numa libertação de 3000 anos de gás acumulado num espaço temporal inferior a 100 anos, o que demonstra a importância da sua conservação.
As árvores, fetos e folhas mortas que povoam este local são propícios à camuflagem dos seus habitantes, todavia, somos informados que à noite é possível localizar com lanternas o brilho dos olhos das tarântulas, para além de ser mais fácil observar o tímido lémure-voador que sai do seu esconderijo para se alimentar.
Contudo, não temos de esperar tanto tempo: agarrado ao tronco de uma árvore está um exemplar desta espécie, que faz as delícias dos nossos olhos curiosos. “Parece que já viram de tudo, não sei que mais vos hei-de mostrar…”, diz o nosso acompanhante, enquanto tira um pedaço de pão do bolso, que atira para um charco turvo de água alaranjada. De imediato, o naco de comida é abocanhado por um enorme peixe-gato, deixando-nos perplexos.
Parece que a quantidade de surpresas reservadas para nós é interminável, mas o nosso passeio termina com um telefonema de alerta, pois o barco que nos levará de volta à civilização está prestes a partir.
No caminho para o barco detenho-me e recolho um búzio vazio que brilha na areia. Regresso a Portugal, mas trago a concha comigo: no meio da selva urbana toco na sua superfície curvilínea e sou transportada até ao planeta Bako, onde a natureza me inunda novamente os sentidos e a selva me segreda as suas leis de sobrevivência.
Ana Torres escreve em https://escreveromundo.com